
"No imaginário popular, uma pessoa gorda não pode existir, porque somente o fato dela habitar o mesmo mundo que você já a coloca num lugar em que ela precisa se moldar, se adequar, deixar de ser quem é, no corpo que tem, para que possa, enfim, ‘ser aceita’."
“Ser gorda tudo bem, mas não precisa romantizar a obesidade”. Que atire o primeiro kg quem nunca ouviu ou usou essa frase. E a pergunta é: de que diabos estão falando quando dizem essa frase? O que vem a ser a romantização da obesidade?
4 de março é o ‘Dia Mundial da Obesidade’, data usada para reforçar campanhas de ‘prevenção’. Já o termo cunhado pela literatura médica, é baseado no cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC), tão obsoleto como no século XIX, quando foi criado. A palavra chega carregada de tom pejorativo, patologizando uma condição de doença crônica a todos corpos gordos, sem, contudo, a necessidade de avaliação individual e subjetiva, tomando como acúmulo de gordura toda pessoa que não esteja dentro dos padrões pré-estabelecidos em cada época.
Pausa.
Voltando à suposta romantização. Basta que uma pessoa gorda esteja existindo - e publicizando isso de alguma forma, para ser atacada de romantizadora da obesidade. Se ela estiver comendo uma salada de alface, está romantizando a obesidade. Se estiver lendo um livro: romantizando a obesidade. Se estiver praticando exercícios: romantizando a obesidade. Trabalhando: romantizando a obesidade.No imaginário popular, uma pessoa gorda não pode existir, porque somente o fato dela habitar o mesmo mundo que você já a coloca num lugar em que ela precisa se moldar, se adequar, deixar de ser quem é, no corpo que tem, para que possa, enfim, ‘ser aceita’.
Agora, de onde vem esse disparate de romantização da obesidade? Essa pergunta tem me perseguido há algum tempo.Etimologicamente, romantizar significa idealizar algo e então desejá-lo. Quantas pessoas você conhece que desejam ser gordas?
De que maneira a vida das pessoas gordas é melhor do que a das pessoas magras quando estas são, o tempo todo, desumanizadas e demonizadas?Gosto muito de um exercício, que é pensar quantas pessoas de grupos oprimidos, sobretudo as gordas, conhecemos em cargos de liderança? Em destaque na política? Em papéis memoráveis e sem servir ao ridículo no cinema e nas novelas? Quantas protagonistas gordas conhecemos? Quantas são vilãs de best-sellers?
E sabemos a resposta: pouquíssimas. O que, por si, já exclui o argumento da ‘romantização da obesidade’ que vem sendo repetido à exaustão, esculachando corpos gordos que estão apenas tentando existir com a dignidade de um corpo padrão, mas são perseguidos e odiados, não importa o que estejam fazendo, sob o argumento de que não é ódio, mas ‘preocupação com a saúde’. Portanto, antes de acusar pessoas gordas de romantização da obesidade, pense de onde parte esse ataque e qual seu objetivo com ele. E também se a pessoa quer emagrecer. Ou ainda se ela tem ou não saúde. Esse é um pedido: parem de patrulhar os corpos alheios.
Vou repetir, novamente: todos sabemos que ninguém está preocupado com a saúde alheia. Caso isso fosse verdade, doaríamos sangue com regularidade, visitaríamos hospitais de crianças com câncer, nos cadastraríamos para doação de medula óssea e, sobretudo, usaríamos máscaras e álcool gel no meio de uma pandemia.
Se não fazemos isso, se não patrulhamos nossos amigos que fumam, que bebem todos os dias, que ingerem drogas dos mais diferentes tipos, que tomam remédios controlados a partir de autodiagnósticos, como quem bebe água, por que temos essa preocupação com os corpos gordos?A conta é simples: por ódio.
E aqui cabe mais questionamentos: qual a origem do seu ódio pelos corpos gordos?Retomamos aqui a guerra contra as pessoas gordas. Play.
Uma matéria publicada por Michael Hobbes neste mês de março no Huffposting revela que, por décadas, a comunidade médica ignorou montanhas de evidências para travar uma guerra cruel e inútil contra pessoas gordas, com dietas que não funcionam e com uma forma de agir criminalizando os corpos, envenenado a percepção pública e arruinando milhões de vidas.No Brasil, uma pessoa gorda morre a cada 7 minutos. É o que afirma uma pesquisa da Preventing Chronic Disease em Atlanta, nos EUA. O estudo revela que no ano de 2019 no Brasil, 168 mil pessoas morreram por serem gordas.
Olhando assim, nem parece assustador, não é mesmo? É um número só um pouco menor do que o de mortes por Covid-19 no meio da pandemia. Se olharmos de perto, enquanto você lê esse texto, rola o feed do Instagram, faz um xixi, responde uma mensagem no WhatsApp, uma pessoa gorda deixa de existir.
O estudo trata das mortes que poderiam ter sido evitadas. No entanto, o que é feito para isso? Nada tem a ver com a quantidade de calorias ingeridas e nem de exercício físico feito. Pessoas gordas não morrem em razão do peso ou do cálculo do IMC, mas por gordofobia, que vem na roupagem da falta de acesso a tratamentos médicos - eu mesma, tenho medo de ir ao médico - ao preconceito, a falta de emprego, a não caber nos lugares. Pessoas gordas morrem porque são rejeitadas socialmente. Porque são hostilizadas o tempo inteiro. Porque se suicidam em razão do isolamento social que chega muito antes a quem habita esses corpos.
Por 60 anos, médicos e pesquisadores conheceram duas coisas que poderiam ter melhorado, ou mesmo salvo, milhões de vidas. A primeira é que as dietas não funcionam. A segunda grande lição que a instituição médica aprendeu e rejeitou repetidamente é que peso e saúde não são sinônimos perfeitos.
Dito isso, não precisamos desumanizar pessoas gordas para que elas se tornem magras, mas, podemos todos, trabalhar em consonância para que todos nós tenhamos saúde de igual maneira.
E aqui, agora, cabe a pergunta: o que você tem feito para que as pessoas gordas ao seu redor não morram como numa pandemia?
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Jéssica Balbino é mulher gorda, colunista da Puta Peita, jornalista, mestre em comunicação e acredita que pode transformar o mundo através das narrativas. É criadora e editora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita. Curadora de eventos literários em todo país. Autora dos livros "Hip-Hop - A Cultura Marginal", "Traficando Conhecimento" e “gasolina & fósforo - meu corpo em chamas” (no prelo). Psicanalista em formação.
4 comentários
Ivison Torres Rosa em
Júlio em
Excelente texto, parabéns!
Julia Cassiank em
Catarina Galarce em