"A revolta é um sentimento natural, no qual todos estão sujeitos, não temos por que desanimar. A nossa missão é a de procurar despertar esse sentimento onde estiver adormecido, e alentando os tímidos, trazê-los à luz onde já esteja desperto."
Todos em geral, sem distinção de nenhuma espécie, têm mais ou menos, despertado, o sentimento de revolta.
Afirmar que esta ou aquela classe social, estes ou aqueles indivíduos são incapazes de se revoltar, é um absurdo.
Tenho ouvido dizer muitas vezes (e talvez eu própria o tenha dito em algum tempo) que a emancipação dos trabalhadores é um sonho ainda bastante distante da realidade, porque a maioria desses trabalhadores nunca poderá estar de acordo com as nossas ideias, pois que estas assentam as suas bases principalmente na revolta, e os ditos trabalhadores não a sentirão nunca verdadeiramente.
Isto é uma afirmação que carece completamente de fundamento.
Tenho observado que todos, mesmo aqueles que parecem mais submissos, têm os seus arrancos de indignação, e não podem tolerar intimamente (embora o façam exteriormente) jugo ou tirania de espécie alguma.Tem-se falado muito, e muito se fala ainda, de que principalmente a mulher é um ente que foi, é e será dócil toda a sua vida, incapaz de qualquer gesto que patenteie a presença de dignidade; e mesmo as anarquistas tenho ouvido dizer que, embora o regime social se transformasse completamente, que fosse tal como nós o desejamos, nem por isso a mulher mudaria de caráter, e deixaria de ser o que é hoje, isto é, um instrumento nas mãos dos homens.
Querem dizer com isto os ilustres céticos, que a emancipação dos oprimidos não somente não se realizarão em breve, se não que não se realizará nunca.
Sinto natural antipatia pelos pessimistas, por isso não me demorarei a preocupar-me com o que eles dizem. São cansados da vida e o melhor é deixá-los em paz.
Contudo, as suas afirmações têm a virtude de desanimar os neófitos e fazer cair no triste abismo da indiferença aqueles que começavam a simpatizar com as nossas ideias.
Pecando talvez por excesso de otimismo, procurarei borrar um pouco a má impressão causada por essas afirmações que não se afirmam em nada.
Se encarregássemos a cada um desses modernos Nietzsche, que nos trouxesse alguns desses seres incapazes de revoltar-se, havíamos de ver como todas as suas sábias afirmações se eclipsariam ante a realidade dos fatos.
Não há um só entre toda a falange de escravizados, comumente chamados trabalhadores, que nas horas de insônia não veja passar-lhe pela mente febril a doce visão de um mundo mais justo e mais humano.É a revolta contra a sociedade presente.
Não há um só entre eles que no trabalho, ao dirigir-lhe o mestre insultos, não sinta ânsias de esbofetear-lhe o rosto.
É a revolta contra a opressão patronal.
Não há um só que, se alguma vez, o patrão comete uma arbitrariedade, e ele confiante na justiça, vai-lhe implorar apoio, e vê que fazem escárnio da sua ingenuidade, defendendo o patrão em vez de castigá-lo como fariam com um operário, não há um só que não reconheça o verdadeiro papel dos governos, isto é, o de defensores exclusivamente dos capitalistas.
E ao reconhecerem isto, equivale a revoltar-se contra o Estado e contra o Capital.
Deixaram de ser resignados.
E a respeito da mulher? Posso assegurar, sem temer equivocar-me, que ela é por natureza rebelde.O que se pode dizer é que uma imensa maioria não manifesta exteriormente a sua revolta.
Eis tudo.
Isso, aliás, é muito natural.
Tantos séculos de escravidão a conduziram a esse ponto.
Tanto no íntimo de todas elas ruge feroz uma terrível tempestade (isso acontece com todos os que chamamos de submissos) que um dia, inevitavelmente, se exteriorizará.
Então, teremos ocasião de comprovar que essa explosão de ódios acumulados durante tanto tempo é verdadeiramente potente, acertada na sua ação.
Se essas revoltas não se manifestam já, se parece não existirem, isso deve-se, não à sua ausência, mas sim à pouca constância nos que a exteriorizaram, que faz com que eles não tenham, porque não podem ter, confiança nos outros.
Certamente que se fossem conscientes da sua personalidade não esperariam pela ação dos outros para manifestarem-se, mas também não é menos certo de que não é necessário que todos sejam conscientes para que haja firmeza e perseverança em nossos atos, e também não será exclusivamente com consciência que se fará a transformação social que almejamos.
Desde o momento que nos compenetramos de que a revolta é um sentimento natural, no qual todos estão sujeitos, não temos por que desanimar. A nossa missão é a de procurar despertar esse sentimento onde estiver adormecido, e alentando os tímidos, trazê-los à luz onde já esteja desperto.
A nossa missão não é grandiosa como se nos afigura.
Se ela nos aparece tão cheia de dificuldades é unicamente porque apenas começamos a lutar com todo o entusiasmo próprio da juventude, surgem por todos os cantos, como bando de gafanhotos, aqueles que cansaram antes de ter feito nada, e com as suas afirmações de homens experimentados, levam o desânimo a todos os corações.
Chegam mesmo a recorrer à burla, à crítica pela natural inexperiência dos novos, sem, contudo, demonstrar-lhes, ao menos com palavras, o que devem fazer.
Eu creio que o caminho que devemos seguir são já bastantes de espinhos naturais, e que nós não podemos evitar. Portanto, devemos impedir que se lhes acrescentem outros que nos são mais dolorosos: os espinhos postos pelos nossos próprios irmãos.
Por isso e porque desejo que aqueles que simpatizarem com os nossos ideais não encontrem nunca hostilidades em nosso meio, e sim alento e energia para acompanhar-nos na luta; por isso é que eu desejaria, ou melhor dito, que eu espero que sempre que algum desses decepcionados vier com as sua cantilenas, se lhes cortem imediatamente as asas, não deixando empreender um voo que nos seria prejudicial, e que, ao vermos um companheiro que por qualquer motivo se sente desanimar; procuremos inculcar-lhe valor, devemos alentá-lo.
Se assim procedermos teremos a recompensa de ver pronto os nossos desejos coroados de maior êxito.
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Fonte: A voz do trabalhador. Ano VII, número 65, página 2, dez.1914.
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