AQUI NÃO QUERIDA! O (não) lugar de travestis e mulheres transexuais no sistema educacional

AQUI NÃO QUERIDA! O (não) lugar de travestis e mulheres transexuais no sistema educacional

Megg Rayara Gomes de Oliveira¹

Travesti da Lambada e Deusa das Águas de Bia Leite
IMAGEM 1 - "Travesti da Lambada e Deusa das Águas", de Bia Leite

As orientações curriculares nacionais “trazem conceitos e temáticas sobre a diversidade sexual para os trabalhos e currículos das escolas” (Adriana SALES; Leonardo Lemos de SOUZA, 2012, p. 29), mas silenciam a respeito das pessoas travestis².

A travesti e também mulheres e homens transexuais sob “a perspectiva das relações entre gênero e corpo subverte[m] o comum e ordinário acerca das diferenças de gênero e sexuais” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36) e o gênero não é mais determinado pelo corpo, mas a partir desse corpo “que agora é bem menos biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36), onde elementos dos gêneros e dos sexos ditos masculinos e femininos encontram-se interseccionados de maneira contínua ou não.

A suposta dificuldade de inteligibilidade desses corpos torna-se justificativa recorrente para os processos de violação de direitos decorrentes da transfobia³, inclusive no sistema educacional.

O fato é que a escola, que em tese deveria ser um lugar de respeito incondicional, tem apresentado dificuldades no trato com travestis, mulheres e homens transexuais, principalmente por adotar posturas que a transforma em “escola-polícia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por tecnologias sofisticadas de poder centradas na disciplina dos corpos e na regulação dos prazeres” (William Siqueira PERES, 2009, p. 249). A intensidade da discriminação e do desrespeito nesse espaço conduz invariavelmente ao “abandono dos estudos ou expulsão da escola, o que consequentemente contribui para a marginalização” (PERES, 2009, p. 245).

Assim, o abandono da escola constitui-se em uma possibilidade muito concreta, tendo em vista a interferência que as diversas situações de violação produziram no rendimento escolar dessas pessoas. “Talvez seja produtivo pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a escola é que as/os abandonam. (Dayana Brunetto Carlin dos SANTOS, 2010, p. 176).


1. Nome Social

Romeo Clarck revista nova escola
IMAGEM 2 – Romeo Clarke (FONTE REVISTA NOVA ESCOLA). Crédito: Newsteam/ SWNS Group/ Rosby Group)

As experiências que subvertem as normas de gênero potencializam “o nome como uma questão importante, bem como a sua representação para sujeitos transexuais e travestis” (SANTOS, 2010, p. 156), já que possibilita a adequação do nome à identidade de gênero. Identidade esta que toma forma na materialização de um corpo construído, muitas vezes, com a ajuda de cirurgias plásticas, colocação de próteses, tratamento hormonal, etc.

A Portaria nº 1.612, de 18 de novembro de 2011, do Ministério da Educação, no artigo 1º, assegura às travestis, mulheres e homens transexuais que não fizeram a retificação do prenome em seus documentos, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério em todo o território nacional (BRASIL, 2011).

Esta portaria torna-se vital no processo de reinserção e manutenção de travestis e transexuais no ambiente escolar, pois procura impedir que sejam nomeados/as pelo seu nome civil, situação que, de acordo com eles/as “suscita sentimentos de dor, raiva, sofrimento e revolta” (SANTOS, 2010, p. 157).

2. Evasão escolar, exploração sexual e prostituição

prostituição e exploração sexual


Fora do sistema formal de educação, travestis e mulheres transexuais dificilmente conseguem inserção no mercado formal de trabalho, tornando-se vítimas potenciais de abuso e exploração sexual comercial em todas as regiões do país.

O processo de aliciamento envolve também estratégias de ressignificação da identidade feminina em um corpo com uma genitália masculina, principalmente das travestis “percebidas com a sexualidade exacerbada, desregrada e problemática” (Alan de Loiola ALVES, 2011, p. 4), sendo responsabilizadas inclusive pela exploração da qual são vítimas. Essa situação pode ser observada em discursos, pautados no senso comum, que procuram descaracterizá-las, “tirando o caráter de pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos” (ALVES, 2011, p. 4).

Além da exploração sexual, marcada por horas intermináveis de trabalho e pela cobrança abusiva de aluguéis, pedágios e multas, essas “meninas” são expostas a outros tipos de violência, como a aplicação improvisada de silicone industrial para criar ou aumentar seios, coxas e glúteos; aplicação ou ingestão de hormônios femininos sem acompanhamento médico; e a “violência praticada pelos policiais, apontando que são vítimas de agressões físicas e de furtos dos pertences, especialmente celulares e o dinheiro conquistado com o programa sexual” (ALVES, 2011, p. 07).

É necessário pontuar que prostituição e exploração sexual são categorias diferentes, e assim devem ser analisadas. A prostituição, assim como qualquer atividade humana, é plural e ganha contornos variados na interpretação de muitas travestis e mulheres transexuais. Por outro lado, é preciso destacar que travestis e mulheres transexuais “não vivem apenas da prostituição” (Luma Nogueira ANDRADE, 2012, p. 16).

No entanto, para muitas delas a prostituição é um lugar de extrema importância, onde suas identidades de gênero não são questionadas, além de ser “um espaço que proporciona autonomia, na medida em que viabiliza um rendimento financeiro e, sobretudo, como meio e possibilidade de existência” (Gustavo Artur MONZELI; Roseli Esquerdo LOPES, 2014, p. 225).

Nessa lógica, os contextos da prostituição deixam de ser considerados apenas como lugar de exposição, exploração e violência, para serem compreendidos como importantes espaços de sociabilidade (Marcos Renato BENEDETTI, 2005). A esquina, então, toma a forma de um “palco onde cada uma dá seu show” (Larissa PELÚCIO, 2005). A prostituta, ainda que momentaneamente, passa a ser a agente da ação, assume o papel da negociante e procura estabelecer as regras para "fechar” o negócio.

Não se trata de uma visão romantizada da prostituição, mas de procurar ouvir as vozes que ecoam das esquinas e calçadas mal iluminadas das grandes cidades, abafadas por discursos carregados de boas intenções, presentes em trabalhos acadêmicos que, na maioria das vezes, tratam a prostituição de forma depreciativa, objetificante, discutida sob a ótica da exploração sexual.


3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O mesmo sistema educacional que expulsa travestis e mulheres transexuais se vale dessa situação para produzir pesquisas acadêmicas problematizando situações que se repetem, sem soluções, a décadas.

Esse mesmo sistema evita assumir sua culpa nesse processo e perguntar como consegue manter-se tão hostil em relação a presença delas?

É imperativo e urgente que a sociedade brasileira não se furte à responsabilidade de colocar em debate tais questões. Nesse processo é fundamental que o sistema educacional dialogue com o movimento social e reveja suas diretrizes curriculares e projetos político-pedagógicos a fim de promover e garantir “um enfrentamento efetivo da homofobia/travestifobia/transfobia e dos processos de estigmatização” (PERES, 2009, p. 262).

Ainda que a prostituição seja apontada como um espaço significativo para a sobrevivência de travestis e mulheres transexuais, esta não pode ser a única possibilidade. Não pode ser interpretada como uma continuidade das identidades trans.

A prostituição deve ser uma possibilidade e não um destino.

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Notas Rodapé

¹ Travesti preta, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná, professora, pesquisa relações étnico-raciais, arte africana e afro-brasileira, gênero e diversidade sexual, atua no movimento social de negras e negros e no movimento LGBT. 
² Embora Sales e Souza especifiquem em sua pesquisa a questão da pessoa travesti, estendemos essa situação à mulheres e homens transexuais.
³ Medo, nojo, vergonha de se relacionar com travestis e transexuais. (PERES, 2009, p. 245).

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Luma Nogueira. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. Tese. Doutorado em Educação. Universidade Federal do Ceará, 2012.

ALVES, Alan de Loiola. Travinha na quinta: a exploração sexual comercial de adolescentes travestis. Disponível em: <http://www.itaporanga.net/genero/3/10/14.pdf>. Acesso em 02 mai. 2014.

BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BRASIL. Portaria Nº 1.612, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: < https://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2933591/portaria-assegura-uso-de-nome-social-de-transexuais-e-travestis-em-orgaos-do-mec>. Acesso em 12 fev. 2019.

MONZELI, Gustavo Artur; LOPES, Roseli Esquerdo. Travestilidade, prostituição e possíveis significações. Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014, p. 220 – 227.

PELÚCIO, Larissa. Na noite nem todos os gatos são pardos. Notas sobre a prostituição travesti. Cadernos Pagu n. 25, jul.-dez. 2005, p.217-248. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/cpa/n25/26528.pdf>. Acesso em 18 jul. 2018.

PERES, William Siqueira. Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transexuais, transgêneros e a escola brasileira. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

SALES, Adriana; Leonardo Lemos de SOUZA. Narrativas de alunas travestis: representações e crenças sobre a escola. In: SOUZA, Leonardo Lemos de; SALGADO, Raquel Gonçalves (Org.). Infância e juventude no contexto brasileiro: gêneros e sexualidades. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2012.

SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em educação). Universidade Federal do Paraná, 2010.

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