A origem da caça às bruxas e do capitalismo.

A origem da caça às bruxas e do capitalismo.

A caça às bruxas não é passado, é a origem política do controle sobre os corpos das mulheres. Entre as chamas da história, Silvia Federici e Barbara Ehrenreich revelam como o capitalismo e o patriarcado nasceram juntos, queimando saberes femininos, parteiras e curandeiras. Este texto da PEITA resgata essas vozes e mostra por que o feminismo segue sendo o feitiço mais perigoso do sistema. A caça às bruxas não acabou, só mudou de nome.

 

Por que a história da caça às bruxas é a origem política do controle sobre as mulheres

Durante séculos, a figura da bruxa foi tratada como lenda, uma mulher misteriosa, perigosa, associada à escuridão e ao mal. Mas o que a história oficial apagou é que, por trás do mito, existe um processo político. A caça às bruxas, entre os séculos XV e XVII, foi um dos instrumentos mais violentos da transição para o capitalismo e da consolidação do patriarcado moderno. O que estava em jogo não era o sobrenatural, e sim o controle da vida.

 

1. Bruxas, parteiras e o início da medicalização masculina

Em Bruxas, Parteiras e Enfermeiras, Barbara Ehrenreich e Deirdre English desconstroem a ideia de que as perseguições medievais foram uma guerra contra a superstição. Elas mostram que o verdadeiro alvo eram as mulheres que detinham saberes populares sobre saúde e reprodução, parteiras, curandeiras e rezadeiras, cujos conhecimentos eram transmitidos fora das instituições e das hierarquias masculinas. Essas mulheres representavam uma forma de poder coletivo: cuidavam das comunidades, ensinavam outras mulheres sobre o corpo, a menstruação, o parto e a cura. No entanto, com o avanço da medicina como instituição científica e estatal, o corpo feminino tornou-se um território a ser conquistado.

A partir do século XVI, a medicina passou a se constituir como ciência masculina e burguesa, legitimada pela Igreja e pelo Estado. As parteiras foram expulsas das práticas oficiais e o cuidado foi sequestrado para dentro das universidades e dos hospitais, espaços interditados às mulheres. A exclusão das parteiras e curandeiras foi base para o nascimento da medicina moderna. A perseguição às “bruxas” não apenas consolidou o monopólio masculino sobre o conhecimento, como também associou o corpo feminino à irracionalidade e ao perigo. 

 

O que foi exterminado junto com as bruxas não foi a feitiçaria, mas uma tradição feminina de saber e solidariedade.

 

2. A fogueira como tecnologia do capitalismo

Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici dá um passo além. Ela insere a caça às bruxas dentro de um contexto econômico global: o processo de acumulação primitiva que deu origem ao capitalismo europeu. Enquanto a propriedade comunal das terras era destruída com os cercamentos que expulsaram camponeses e camponesas dos campo, o corpo das mulheres passou a ser controlado como um novo meio de produção.

O corpo feminino foi colonizado e transformado em força reprodutiva do trabalho. A caça às bruxas foi, portanto, uma política de Estado, uma forma de disciplinar as mulheres e garantir a reprodução da força de trabalho necessária ao capitalismo.

 

“Se o trabalho dos homens era explorado nas fábricas, o das mulheres era apropriado em casa”, escreve Federici.

 

Ao transformar o cuidado e a reprodução em atividades “naturais”, sem valor econômico, o sistema capitalista consolidou uma hierarquia de gênero e criou a figura da mulher submissa, doméstica e silenciosa. As fogueiras, nesse sentido, foram o laboratório social da obediência. Serviram para instaurar o medo, para transformar a diferença em culpa e a liberdade em crime. A violência sexual, a opressão institucional e o terror público foram as ferramentas que moldaram a nova ordem de gênero e trabalho.

 

3. Da Europa à América Latina: a colonização dos corpos

Federici e outras teóricas feministas latino-americanas lembram que o processo não terminou com o fim das caças na Europa. Ele atravessou o Atlântico e foi reeditado na colonização das Américas. Nas terras indígenas e africanas, a lógica foi a mesma: converter o corpo em recurso e a espiritualidade feminina em ameaça.

As parteiras e curandeiras indígenas foram demonizadas, as práticas de matriz africana perseguidas, as mulheres negras escravizadas tornaram-se o núcleo da reprodução social do sistema colonial. O mesmo poder que queimava mulheres brancas na Europa agora violentava mulheres negras e indígenas no Brasil.

A lógica patriarcal do capitalismo global criou uma geografia do extermínio: quanto mais distante do centro, mais brutal o controle. Hoje, essa herança colonial ainda estrutura a vida das mulheres na América Latina. Os ataques aos terreiros, as invasões e explorações em terras indígenas, os projetos de lei que ameaçam direitos reprodutivos e o feminicídio são continuações diretas da caça às bruxas, em novas formas de queima — simbólica, política e literal.

 

4. As novas fogueiras

Silvia Federici, em Mulheres e a Caça às Bruxas, mostra que as perseguições contemporâneas, especialmente em países africanos e latino-americanos, seguem a mesma lógica: criminalizar a pobreza, a autonomia e o corpo feminino. Nos rincões do capitalismo neoliberal, onde a precarização atinge de forma mais violenta as mulheres, “a caça às bruxas continua sendo uma forma de reorganizar a obediência social”. No Brasil, essa reorganização aparece nas tentativas de desmontar políticas públicas, na criminalização do aborto, na deslegitimação das doulas e parteiras tradicionais e na violência contra mulheres de terreiro e religiões de matriz africana, no Estado que nega direitos, no mercado que explora nossa saúde mental e física.

A fogueira hoje tem nomes modernos: austeridade fiscal, fundamentalismo religioso, racismo estrutural. Mas o objetivo é o mesmo: reduzir mulheres ao silêncio e controlar o trabalho invisível que sustenta o sistema.

 

5. Reencantar o mundo

Revisitar essa história é um gesto político. Porque entender que a caça às bruxas foi uma estratégia de dominação é também entender que a resistência das mulheres é uma herança viva. As curandeiras, as benzedeiras, as mães de santo, as parteiras e as professoras de hoje são as sucessoras das bruxas que não conseguiram queimar.

Reencantar o mundo, como propõe Federici, é reverter a lógica de separação entre razão e corpo, entre ciência e espiritualidade, entre o individual e o coletivo. É reconstruir o comum, os vínculos, os saberes e os afetos que o capitalismo tentou destruir. A bruxaria que o poder tentou exterminar nunca foi sobre maldição: foi sobre autonomia. E a cada mulher que se organiza, que cura, que ensina, que luta, a história se reescreve.

As bruxas de hoje não usam caldeirão: usam consciência, solidariedade e política.

Para nós, ser bruxa é reivindicar a memória das que foram queimadas e a luta das que seguem de pé. É dizer que o corpo é território político, que o cuidado é uma forma de poder e que a autonomia é uma forma de magia. A cada mulher que cura, planta, educa, grita ou resiste, uma fogueira se transforma em luz. Queimar o patriarcado cansa, mas ilumina.

 

 

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Leituras Feministas Recomendadas pela PEITA para entender as raízes históricas da perseguição às mulheres e a relação entre corpo, capitalismo e poder patriarcal.

 

  • Silvia Federici — Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva

    Um estudo fundamental sobre como a transição para o capitalismo foi sustentada pela caça às bruxas e pelo controle dos corpos das mulheres. Federici conecta a história da Europa à colonização das Américas e à atual precarização da vida.

  • Silvia Federici — Mulheres e a Caça às Bruxas

    Complementa Calibã e a Bruxa, mostrando como a perseguição às mulheres continua viva nas formas contemporâneas de violência de gênero, pobreza e racismo.

  • Barbara Ehrenreich & Deirdre English — Bruxas, Parteiras e Enfermeiras: Uma História das Curandeiras

    Obra clássica do feminismo socialista que revela como a medicina moderna foi construída a partir da expulsão das mulheres dos saberes sobre saúde e reprodução.

  • Angela Davis — Mulheres, Raça e Classe

    Referência central para entender a intersecção entre feminismo, antirracismo e luta de classes — e como o capitalismo depende da exploração racial e de gênero.

  • Lélia Gonzalez — Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira

    Texto essencial para compreender como as estruturas da colonização moldaram o imaginário brasileiro e continuam definindo quem é vista como “mulher perigosa” — a mulher negra.

  • Joice Berth — Empoderamento

    Reflexão sobre poder, autonomia e coletividade a partir de uma perspectiva feminista negra brasileira.

  • bell hooks — O Feminismo é para Todo Mundo

    Um guia afetivo e político para compreender o feminismo como prática libertadora e cotidiana.

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