Esta história começa no mês do Orgulho LGBTI+ e termina no mês da Visibilidade Lésbica.
Emblemático pensar que, no ano de 2020, os dois piores meses da minha vida foram entre estas duas datas tão importantes pra celebração dos direitos conquistados pela comunidade LGBTI+.
Direitos humanos que eu não sentia que tinha quando começaram os ataques a mim e a minha namorada logo que ela se mudou pro meu apartamento, no qual eu já morava sozinha há 3 anos. Mas quando o carro dela não saía mais da garagem lotada de carros inutilizados pela pandemia, a violência começou.
Na solteirice com ascendente em Shane de L Word, trazendo crushes quase toda noite pra casa, eu não sofri nenhum preconceito. Mas quando os discos de L7 começaram a tocar com frequência no vinil, começaram também as ligações no nosso interfone no meio da madrugada.
Quando o quadro da Courtney Love tava já aconchegado no lugarzinho dele na nossa parede, as nossas fechaduras da porta do apartamento foram coladas com Super Bonder. Tentavam em vão nos trancar mais uma vez num armário imaginário.
Estávamos impedidas mais uma vez de amar por alguém que se achava no direito de nos acordar no meio da madrugada, destilando sua incapacidade de lidar com a felicidade alheia. Em casa, ficávamos acordadas noite adentro totalmente fragilizadas com a inaptidão de nos defender dos ataques.
O prédio era daqueles velhos, sem câmeras de segurança, sem rastreador de chamadas no interfone. Na Delegacia de Proteção à Pessoa, nos pediam nomes de suspeitos, evidências de homofobia, algo que pudesse ser usado junto à recém-nascida equiparação da LGBTIfobia à Lei de Racismo (Lei 7.716/1989). Mas isso quem fez foi o atendente, nunca nos passaram pro delegado, nem ao menos pra investigadora responsável pelos crimes de homofobia. Não conseguimos contato com ninguém, justo na delegacia responsável por nos proteger. Estávamos invisíveis.
Os amigos nos pediam, “coloquem câmeras de vigilância no corredor”, mas até internamente a burocracia defendia o outro lado. Só quem vive esta situação entende o quão frágil somos quando não temos segurança em nossa própria casa.
Você conseguiria dormir sabendo que alguém pode estar à sua porta no meio da madrugada? Você ficaria bem ao ver seus gatos pararem DO NADA e ficarem olhando para um ponto fixo? Prefiro um espírito vagando do que um corpo físico, presente e intolerante.
Sabe quando dizem que saco vazio não para em pé? Pois é, no meu caso, o saco que não dorme bem não consegue lutar contra o desrespeito e a intolerância às diversas orientações sexuais.
Há anos luto em diversas entidades de defesas dos direitos LGBTI+, como o Grupo Dignidade e o Coletivo Cássia em Curitiba, e me vi sem saída, me senti fugindo: fugindo pra ter paz, fugindo pra dormir segura, fugindo pra não ficar esperando que, além da nossa saúde mental, o agressor nos roubasse também a nossa saúde física.
Mudamos porque não somos obrigadas.
Mudamos pra um prédio em que a síndica nos disse com um sorriso: “sejam bem-vindas!”. E ali parecíamos existir novamente. Um prédio em que a minha vizinha de porta nos traz bolo de milho no fim do domingo pra “tomar com cafézinho”, e manda beijinho com a mão carinhosa de uma avó que todos queriam ter. Um apartamento ensolarado, com taco de madeira encerado, com vinil do Belchior tocando, com gatos tranquilos e costelas de (vi)adão decorando, um clichezão sapatão. Um puta privilégio poder sair de uma situação de violência, né? Consegue imaginar as milhares de pessoas que não podem se mudar?
No mês da visibilidade lésbica, nós finalmente descansamos dessa luta pessoal, mas continuamos a lutar pra que cada vez mais os espaços sejam seguros pra todas as mulheres que amam mulheres, e que viver em sociedade nos proporcione todas as oportunidades de viver uma vida digna e feliz.
( • )
Thatiana Tucci
Co-fundadora do Coletivo Cássia. Relações Públicas, professora, tradutora e chefe de operações da PEITA.
Texto publicado originalmente no blog do Coletivo Cássia.