bell hooks, assim Gloria Jean Watkins ficou conhecida ao redor do mundo. Uma das principais pensadoras e ativistas feminista negra se despede de nós deixando um legado de esperança, ensinamentos, ativismo e luta.
Gloria nasceu em Kentuck, nos Estados Unidos, em 25 de setembro de 1952. Viveu a segregação racial no país e isso informou muito de sua produção teórica e ativismo. Optou pelo pseudônimo bell hooks em homenagem a sua avó, Bell Blair Hooks, grafando o novo nome em letras minúsculas, de forma a chamar atenção para as suas palavras e não à sua pessoa. Estudou em uma escola segregada e depois em escolas integradas. Em uma das passagens do livro Ensinando a Transgredir: A educação como prática de liberdade, bell hooks nos conta que a escola segregada lhe permitiu ser uma criança negra que podia estudar, ter atenção dos professores, escrever. A escola mista, resultado controverso de políticas raciais de exclusão, lhe tirou possibilidades de ser e estar naquele lugar, tal como as crianças brancas.
hooks estava na universidade quando escreveu seu primeiro livro, Não serei eu uma mulher? aos 19 anos, mas só foi publicado 10 anos depois. Nessa obra, hooks faz alusão às palavras de Sojourney Truth no discurso e não serei eu uma mulher? Não somos nós, mulheres negras, mulheres? Não somos humanas? Não somos dignas de afeto, cuidado, amor? Não seremos nós aptas a ser e estar nesse mundo?
A obra de hooks atravessa as fronteiras do tempo e espaço, alcançando mulheres negras em todo o mundo, compartilhando as dores e dissabores de uma vida marcada pela violência racial, colonial, patriarcal, de classe, de religião, de nacionalidade, de sexualidade e tantas outras. De forma lúcida e acessível, a autora aborda o racismo, sexismo e classismo de modo a ampliar os debates críticos dentro e fora do mundo acadêmico. Suas palavras se tornam atemporais, sendo tão contemporâneas quanto foram a 40 anos atrás, quando ela começou a escrever. A perpetuação da violência racial e de gênero nos faz ainda ecoar as palavras de hooks, reelaborar posições e dar continuidade ao seu legado.
Combinando os mais diversos marcadores sociais, hooks já era interseccional antes da cunhagem do termo. Sua preocupação com as diversas camadas de opressão lhe fizeram desde cedo perceber as nuances do sexismo, do racismo e do classismo contra mulheres negras. Todo o pensamento de hooks é perpassado por essa preocupação, nos inspirando a olhar para além de opressões desassociadas, mas combinadas em diferentes níveis em diferentes mulheres.
Essa preocupação com interseccionalidade, o entrelaçamento de camadas de opressão, foi trabalhada pela autora com profundidade, mesmo que sem o termo, no livro Teoria Feminista: Da Margem ao Centro, onde ela demonstra a cumplicidade do feminismo branco liberal com as violências raciais contra mulheres negras, indígenas e latinas nos Estados Unidos. Mesmo que localizado, esta obra diz muito sobre o alcance do feminismo branco e seus silêncios em torno de outras violências que mulheres brancas de classe média e alta não sofrem.
Importante destacar que o sujeito do feminismo é a mulher branca de classe média e alta. hooks nos diz que existe uma dicotomia central que define todo pensamento ocidental, dividindo pessoas entre sujeitos e objetos. Para ela, sujeitos são aqueles que falam por si, têm o direito de definir as próprias realidades, estabelecer suas identidades e nomear sua história. Enquanto objetos são aqueles a quem a realidade é definida por um terceiro, a história é definida e nomeada pelos sujeitos.
Esse pensamento dicotômico define as mulheres como dóceis, amáveis, voltadas para o lar, e os homens como ativos, violentos e voltados para o político. É o mesmo pensamento que informa que homens trabalham para manter a casa, mulheres cuidam dos filhos. Contudo, o que dizer sobre as mulheres negras, afastadas de seus lares para cuidarem de outras casas, de filhos de outras? Mulheres negras são colocadas à margem da sociedade, no trabalho, no afeto, no cuidado, na educação, na saúde. Como nos diz bell hooks, “estar à margem significa pertencer ao todo, mas estar fora do corpo principal”. O que não foi feito contra mulheres negras em nome da proteção de mulheres brancas?
Dois pontos marcam um ideal da mulher negra na sociedade contemporânea, uma imagem construída de que a mulher negra existe para servir, tanto mulheres brancas quanto homens, e também a hipersexualização de seus corpos, prontos para servir aos desejos de homens brancos. O racismo e o sexismo trabalham juntos para a perpetuação dessa imagem negativa que vai passando de geração em geração, inclusive pela teoria feminista. bell hooks também argumenta que essa representação estereotipada é um dos fatores impeditivos às mulheres negras de se tornarem intelectuais e há sempre uma “necessidade de demonstrar e defender a humanidade dos negros incluindo sua habilidade e capacidade de raciocinar logicamente, pensar coletivamente e escrever lucidamente”, temos que nos provar constantemente como capazes, como humanas, como mulheres.
Contra a universalização do termo Mulher, hooks afirma a necessidade de ampliação do feminismo para além do ideal de mulher branca ocidental de classe média. Para ela, é necessário a inclusão de pautas de mulheres negras, indígenas, latinas e tantas outras identidades. É necessário o abandono de um ideal universal de mulher. A pluralidade de vivências deve ser vista como uma potencialidade para o movimento feminista e não como um impeditivo para suas demandas. De acordo com bell hooks “se negras e brancas continuarem expressando medo e raiva sem se comprometer a ir além dessas emoções para explorar novas oportunidades de contato, nossos esforços para construir um movimento feminista inclusivo fracassarão”.
Além da sua perspicácia ao trabalhar o feminismo como movimento possível a todos, hooks se voltou à educação como uma prática de liberdade, em busca da diversidade, da compreensão da diferença como potencialidade de luta e vivência, não só sobrevivência, num mundo que nos mata todos os dias. Grande entusiasta de Paulo Freire, hooks continuou seus pensamentos, apresentando a pedagogia crítica como possibilidade de mudança das relações sociais, no ensino de nível fundamental, médio e superior. Para hooks, a teorização de mulheres negras nos apresenta a potencialidade de um mundo melhor.
Sua genialidade nos deixa hoje, mas seu legado continua na voz de mulheres negras em todo o mundo. Temos agora a responsabilidade de ecoar suas palavras, de não as deixarem calar. hooks nos ensinou muito, nosso papel é multiplicar esses aprendizados.
Sugestões de leitura:
- Ensinando a Transgredir: a educação como prática de liberdade
- Erguer a voz: pensar como feminista, ensar como negra
- E não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismo
- Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática
- Tudo sobre o amor: novas perspectivas
- Teoria Feminista: da margem ao centro
- O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras
- Olhares negros: raça e representação
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Ananda Vilela, mulher negra da periferia de Suzano, na Grande São Paulo. Doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestre pela mesma instituição. Pesquiso raça e racismo nas Relações Internacionais e também as intersecções entre raça, gênero e classe nas relações sociais.