Uma série de protestos populares agitou a vida chilena entre 2018 e 2020. O país adentrou a pandemia do Covid-19 em meio a manifestações de cunho social, político e econômico, expressando a insatisfação da população com seus governantes e suas ações na política nacional. Os protestos começaram com algumas ocupações em universidades e foram tomando grandes proporções com a combinação de pautas estudantis e populares. A insatisfação com a realidade ficou ainda mais explícita com a eleição de uma Assembleia Constituinte em 25 de outubro de 2020, demonstrando ser inadiável as mudanças requeridas pelo povo. No mês de outubro a Assembleia completa 3 meses de discussões em torno da escrita de uma nova constituição.
A constituição chilena representa as regras e leis da ditadura de Pinochet. Augusto Pinochet governou o Chile sob um regime autoritário e violento de 1973 a 1990. Mesmo com a volta da democracia no país, ainda é sob a constitucionalidade de Pinochet que vivem 18,95 milhões de chilenos. Além da violência institucionalizada, o período de Pinochet foi caracterizado pela neoliberalização do país, com flexibilização e precarização de direitos trabalhistas, privatização de serviços básicos, como água, luz, esgoto e políticas públicas de privatização da saúde, educação e previdência. Diferente de outros países da América Latina a redemocratização no Chile não impulsionou a escrita de uma nova constituição, que adquire agora, 30 anos depois do fim da ditadura, força para pensar uma nova proposta de normas jurídicas.
Ainda nas eleições para os 155 constituintes ficou claro que muitas mudanças estão por vir. A paridade de gênero e nação - considerando a população originária no país - foi um dos fatores que representou a sede por enterrar a constituição de Pinochet. Nesse contexto, Elisa Loncón, feminista, indigena Mapuche e acadêmica, foi eleita a presidente da Constituinte. Um marco na política chilena, uma mulher indígena tem em suas mãos a responsabilidade de apresentar até o segundo semestre de 2022 a proposta da nova constituição. Considerando sua trajetóriaria, seu trabalho e sua participação no movimento feminista, as expectativas são grandes para a nova norma, representando uma vasta parcela da população que é historicamente marginalizada.
O movimento feminista no Chile tem tido participação central nas manifestações populares desde 2018. O que iniciou como uma pauta estudantil contra a violência sexual nas universidades, foi crescendo e culminou na convocação do coletivo Las Tesis para uma grande manifestação contra o patriarcado, que levou às ruas de Santigo 2 milhões de mulheres e 3 milhões em todo o país. O protesto internacionalizou a luta de feministas que já trabalhavam nos bastidores da política chilena a anos.
“El patriarcado es un juez. Que nos juzga por nacer. Y nuestro castigo. Es la violencia que no ves. Es femicidio. Impunidad para mi asesino. Es la desaparición. Es la violación. Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni cómo vestía. El violador eres tú. Son los pacos. Los jueces. El estado. El Presidente. El estado opresor es un macho violador”, dizia a composição feminista.
A canção entoada por centenas de mulheres das ruas de Santiago inspirou movimentos feministas no mundo todo, sendo traduzida em diversas línguas, trazendo para primeiro plano a violência não dita, a violência velada sofrida por mulheres. A agenda feminista perpassa todas as camadas sociais, seja no trabalho produtivo ou reprodutivo, seja no espaço privado ou público, seja em suas casas ou nas estâncias governamentais. O estado é o violador quando permite que recebamos menos pelos mesmos trabalhos que homens, quando não julga a brutalidade a que mulheres são expostas todos os dias, quando promove a feminização da pobreza, quando institucionaliza as violências sutis e explícitas as quais mulheres são acometidas.
Ficou claro para a população chilena que a própria constituição se tornou uma barreira para as mudanças sociais, políticas e econômicas necessárias. O estado mostrava na própria constituição sua face mais cruel: aquela que permite e promove a morte em vida de milhões de pessoas. Não só o movimento feminista conquista vitórias com a Assembleia Constituinte, mas também a população indígena, que tem nesse contexto a oportunidade de reclamar direitos a muito tempo negados. Considerar a pluralidade de nacionalidades no Chile e respeitar a diversidade desses povos em relação a suas próprias culturas e formas de ser e estar no mundo faz parte de um processo de reconhecimento de humanidade que lhes é preterida diariamente.
Em votações recentes e históricas na Assembleia foram aprovadas duas pautas importantíssimas para os movimentos sociais, uma diz respeito à inclusão dos debates de sustentabilidade e emergência climática, demonstrando respeito à natureza e aos recursos naturais. A segunda, impulsionada pela líder da Assembleia, define o que é negacionismo e uma punição para os abusos de Direitos Humanos durante a ditadura e também da repressão dos povos Mapuche nos últimos anos. Essa preocupação da Assembleia demonstra que alguns de seus legisladores estão comprometidos com as mudanças sociais necessárias para a proteção e reparação dos povos violentados.
As conquistas do movimento feminista e movimento de povos indígenas no Chile motivam a continuação da luta pelas minorias em todo o mundo. Essa vitória demonstra que a luta não é em vão e que pode modificar as nossas realidades. A eleição de uma Assembleia Constituinte explicita a necessidade e a vontade de mudanças por parte da população. Os processos políticos no Chile ainda guardam grandes emoções com o caminhar da Assembleia, mas uma certeza que nos estimula é que o povo não vai retroceder. Uma vez que o povo saiba que o poder é seu, não há volta.
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Ananda Vilela, mulher negra da periferia de Suzano, na Grande São Paulo. Doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestre pela mesma instituição. Pesquiso raça e racismo nas Relações Internacionais e também as intersecções entre raça, gênero e classe nas relações sociais.