arte roxa com o rose de dandara dos santos e marielle franco desenhados em linhas brancas e uma mãe preta, aberta, em cima da cara de ambas.

DANDARA, MARIELLE E A POLÍTICA DA MATABILIDADE NO BRASIL por Megg Rayara Gomes de Oliveira

Onze meses separam o assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos do assassinato covarde da vereadora negra Marielle Franco.

 

Dandara dos Santos foi assassinada em Fortaleza no dia 15 de fevereiro de 2017 por 12 pessoas, sendo sete adultos e cinco adolescentes, num ritual covarde, filmado e compartilhado nas redes sociais.

Marielle Franco foi executada a tiros dentro do seu carro, na região central do Rio de Janeiro, por volta das 21h30 no dia 14 de março de 2018, juntamente com seu motorista Anderson Gomes.

Elas não se conheciam, mas traziam em seus corpos marcas que as colocavam como pertencentes a grupos “humanos julgados como descartáveis e supérfluos” (Achille MBEMBE, 2012, p. 135), portanto passíveis de serem assassinados.

Confinadas no terreno da brutalidade genérica, concordo com o pensamento de que o poder em tempos pós-coloniais assume a forma de “necropolítica” (MBEMBE, 2012), já que preconiza como estandarte a morte daqueles que não são capazes de encaixar-se dentro das normativas manipuladoras (Jaime Alonso CARAVACA-MORERA; Maria Itayra PADILHA, 2018) da cis heterossexualidade branca.

Dandara foi morta por ser travesti. Marielle por ser negra, lésbica, feminista e defensora dos direitos humanos.

Não se trata de esquadrinhar aqui quem eram Dandara e Marielle, mas problematizar o valor atribuído às suas vidas pela lógica capitalista, onde transfobia, racismo e lesbofobia podem ser interpretados a partir da lógica da necropolítica, já que a vida de algumas pessoas são consideradas mais valiosas que a de outras.

Mbembe (2012) desenvolve o conceito de necropolítica a partir das problematizações de Michel Foucault (2005) sobre biopoder.

Osmundo Pinho (2008), homossexual, negro, pesquisador e professor universitário, explica que o biopoder incide sobre o corpo coletivo das populações e constitui-se em poder de administração da vida coletiva no corpo social.

Foucault (2005, p. 304) pergunta, então: “como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências?”

Nesse sentido, o racismo, a transfobia e a lesbofobia passam a ocupar um papel estratégico nesse processo e, assim, destacar os desvios “e atributos negativos com a imputação do estigma, servindo de aviso para os ‘normais’ que deveriam manter-se afastados da pessoa ‘estragada’, ‘impura’, ‘indigna’ e ‘merecidamente’ excluída do convívio dos ‘normais’.” (Waléria MENEZES, 2002, p. 98).

Tanto o racismo quanto a transfobia e a lesbofobia foram e continuam sendo utilizados para reduzir as sujeitas aos quais se referem àquilo que é interpretado como defeito.

Inscritas em uma sociedade capitalista, que atribui valor as existências humanas através da “compra e venda de força de trabalho no seu nível mais fundamental” (Leomir Cardoso HILÁRIO, 2016, p. 205), sujeitas como Dandara e Marielle são consideradas supérfluas e podem ser naturalmente excluídas.  Ou seja, a ação política de morte é a forma política adequada ao capitalismo, decidindo inclusive quem deve e quem não deve morrer.

Os assassinatos de Dandara dos Santos e de Marielle Franco seguiram essa lógica, ainda que em contextos diferentes.


1. Os assassinos de Dandara


A identidade de gênero travesti de Dandara foi utilizada para justificar seu assassinato, já que esta seria de menor valia quando comparada a cis heterossexualidade normativa,

Dandara era uma travesti branca, pobre, com baixa escolaridade, sem emprego formal ou profissão definida e moradora da periferia de Fortaleza.

Seus assassinos, 12 no total, são negros e assim como a vítima, também são pessoas pobres, com baixa escolaridade, sem profissão definida e moradores da periferia de Fortaleza. 

São muitos os pontos que aproximam vítima e assassinos e os colocam em situação de extrema exclusão, sujeitos a ações coercitivas do biopoder. Porém, a identidade de gênero travesti de Dandara foi utilizada para justificar seu assassinato, já que esta seria de menor valia quando comparada a cis heterossexualidade normativa, ainda que expressa em corpos negros, pobres e também passíveis de serem atingidos pela política da matabilidade, ou seja, da necropolítica.

Chamo a atenção para o fato de que mesmo a masculinidade hegemônica não é um atributo fixo. Essa masculinidade se constitui do contato com o outro, exigindo que as normas de hierarquização sejam atualizadas. Assim, as masculinidades, negras ou brancas, se utilizam da branquidade e da cis heterossexualidade para garantir uma supremacia inconteste de gênero que opera no sentido para se sobrepor ao feminino, seja cis ou trans.

A busca permanente pela manutenção dessa supremacia agride, violenta, mutila, mata...

Mata travestis em situação de vulnerabilidade como Dandara e mulheres em ascensão como Marielle Franco.


2. Quem matou Marielle?

 foto colorida de marielle franco na tribuna da câmara de vereadores do rio de janeiro. marielle é mulher negra, usa turbante colorido e uma blusa roxa de manga comprida com a frase costurada, letra a letra, diversas mas não dispersas.

As investigações apontam para o envolvimento de milícias formadas por ex-policiais e políticos poderosos, por isso mesmo o caso continua sem solução.

Essa pergunta que não cala e com a resposta em aberto, revela a necropolítica de que fala Mbembe (2012), em operação no Estado brasileiro, que autoriza a violência estrutural e institucional dirigida a pessoas como Marielle com a intenção deliberada de exterminá-las.

Marielle desafiou a lógica da exclusão e conseguiu como mulher negra, lésbica e moradora do Complexo da Maré do Rio de Janeiro, formar-se em sociologia e eleger-se vereadora e tinha possiblidades reais de ser eleita senadora. Sua ascensão social e política a transformou num alvo maior ainda.

Evidentemente que a vigilância sobre seu corpo, sobre suas ações e principalmente sobre suas posições políticas – já que era a voz de milhares de pessoas excluídas lutando por direitos - acionaram os dispositivos da necropolítica que terminaram com sua execução.

As investigações apontam para o envolvimento de milícias formadas por ex-policiais e políticos poderosos, por isso mesmo o caso continua sem solução.

A própria maneira como o caso vem sendo conduzido revelam uma incômoda e comprometedora morosidade que beneficia mandantes e executores do crime, que pode ser interpretada como um recado para quem, como Marielle, ousa a desafiar as estruturas do poder da maneira como ele se apresenta.

Ainda que a execução tenha ocorrido no centro do Rio de Janeiro, nenhuma câmera de segurança, inexplicavelmente, foi capaz de registrar qualquer imagem dos assassinos. Além do mais, a cena do crime não foi preservada, o que segundo especialistas, comprometeu o trabalho da perícia e, a polícia civil demorou oito meses para exibir um simples retrato falado que seria do suposto criminoso.


3. Algumas considerações

Dandara dos Santos e Marielle Franco foram ousadas ao se constituírem como sujeitas de direito e moveram, cada uma a sua maneira e com as ferramentas que dispunham, estruturas apresentadas como naturais e imutáveis.

O fato de desafiarem a lógica imposta pelo machismo, pelo racismo, pelo classismo e pela lesbo e transfobia resultou em seus assassinatos.

A prisão dos assassinos de Dandara só foi possível graças às dimensões que o caso tomou e foi autorizada, em partes, pela lógica da eliminação imposta pelo capitalismo e pela necropolítica, que trata as camadas mais pobres de nossa sociedade como menos importante e de fácil substituição.

São vidas que valem menos e precisam ser eliminadas, seja pela morte, seja pela prisão. Mas ainda assim se configura em algo novo quando se relaciona a assassinatos de travestis e mulheres transexuais, já que, via de regra, independentemente da classe social ou do pertencimento racial dos assassinos, na maioria das vezes, permanecem impunes e raramente vão a julgamento.

O assassinato de Marielle Franco segue sem solução.

A morosidade das investigações, mesmo diante de pressões de boa parte da sociedade brasileira e de grupos que lutam pelos direitos humanos no Brasil e no exterior, revelam que seus matadores fazem parte de um segmento da sociedade que merece a proteção do Estado, pois suas vidas são aquelas consideradas importantes, ainda que cometam crimes hediondos. Ao que parece, há uma deliberada tentativa para que o caso caia no esquecimento e passe a figurar como mais um escandaloso assassinato sem solução.

Isso não significa que as autoridades policiais não tenham competência para investigar, ao que parece, essas autoridades não têm liberdade para fazê-lo.

( • ) 

foto colorida de megg rayara, mulher, travesti, negra, vestida com uma blusa vermelha e batom vermelho.
Megg Rayara Gomes de Oliveira. Travesti preta, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná, professora, pesquisa relações étnico-raciais, arte africana e afro-brasileira, gênero e diversidade sexual, atua no movimento social de negras e negros e no movimento LGBT.

Ilustração Thállaty Braus Guilherme.

( • )  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CARAVACA-MORERA, Jaime Alonso; PADILHA, Maria Itayra. Necropolítica trans: diálogos sobre o dispositivo de poder, morte e invisibilidade na contemporaneidade. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-07072018000200326&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 6 mar. 2019.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Da biopolítica à necropolítica: variações foucaultianas na periferia do capitalismo. Sapere aude, Belo Horizonte, v. 7 - n. 12, p. 194-210, janeiro / junho2016 - ISSN: 2177-6342.

MBEMBE, Achille. Necropolítica, una revisão crítica. Em: GREGOR, Helena Chávez Mac (Org.). Estética e violência: Necropolítica, militarización y vidas lloradas. México: UNAM-MUAC, 2012, p. 130-139.

MENEZES, Waléria. O preconceito racial e suas repercussões na instituição escola. Revista da Fundação Joaquim Nabuco, n. 147, ago, 2002. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 5 set. 2005.

PINHO, Osmundo. Relações raciais e sexualidade. Em: OSMUNDO, Pinho; SANSONE, Livio (Orgs.) Raça: novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2008, p.257-284.

 

( • ) 
peita.me
@putapeita
/putapeita

Voltar para o blog

Deixe um comentário

Os comentários precisam ser aprovados antes da publicação.

Siga @putapeita