foto colorida da Fabiane Cruz, mulher, indígena, cabelos compridos, lisos, pretos, com cokar de penas pequenas e coloridas ao entorno da cabeça, pintura nos olhos, bochechas e queixo. está com uma blusa bordô e usa brincos de pena e miçanga

FEMINISMO INDÍGENA OU NHANDUTÍ GUASU KUNHÃ: A REDE DE MULHERES INDÍGENAS PELOS DIREITOS ANCESTRAIS E RECONHECIMENTO ÉTICO por Fabiane Medina da Cruz

Sempre me interpelam em rodas de conversa sobre feminismo, que a mulher indígena não tem “o direito” de ir caçar com os homens. Isso mostra um profundo desconhecimento dos signos de sociabilidade indígena.


Mulheres indígenas e o feminismo


A liderança de mulheres em territórios étnicos é um dado da ancestralidade indígena. Isso quer dizer que a mulher indígena sempre teve papel de importância na administração do território ancestral. É da mulher indígena o maior conhecimento das ervas e rituais de cura. Numa terra ancestral, é da mulher a responsabilidade de gestão do território. Isso envolve economia, educação, liderança, sempre na perspectiva de passar valores éticos para as gerações futuras.

Sempre me interpelam em rodas de conversa sobre feminismo, que a mulher indígena não tem “o direito” de ir caçar com os homens. Isso mostra um profundo desconhecimento dos signos de sociabilidade indígena. Pois, primeiro, que não há de fato uma proibição das mulheres à caça, pesca, etc., e outras atividades vistas como “masculinas”. Ocorre é que no mundo indígena não há uma separação disparitária em relação as atividades “domésticas” das mulheres. Por exemplo, o espaço doméstico, que compreende a casa, não é visto como um espaço de menor valor. Pelo contrário, o lugar de se morar é o ambiente mais importante para a comunidade e, por este motivo, é de responsabilidade das mulheres. Também as mulheres não são impedidas de caçar, mas, segundo a divisão do trabalho dentro de uma sociedade indígena, a atividade de risco à vida está direcionada à responsabilidade masculina, por uma questão de salvaguardar a existência, uma vez que fica a cargo das mulheres guardar a vida dos nossos descendentes.

Às mulheres indígenas também não está proibido o aborto. Diferentemente do mundo cristão, a decisão de parar ou prosseguir a gestação é uma decisão especificamente da mulher. Pois o corpo da mulher indígena cabe a ela mesma. É o seu território particular. Assim como a sexualidade no mundo indígena não está recriminada. Não há categorias para definir a sexualidade.

Dentre os estudos do feminismo, discordo da premissa do patriarcado como sistema dominante e universal, que determina a organização de todas as sociedades, desde o início dos tempos. Pelo fato de o patriarcado se tratar de uma estratificação que está ancorada na posse e na herança. Dando base a dispositivos de regulação social, tal como a difamação das mulheres, por meio do questionamento a respeito da legitimidade da progenitura dos herdeiros, isto é, a legitimidade quanto aos herdeiros do patriarca. Esta sanção está ligada não aos cuidados ou amor do pai para com os filhos, mas à manutenção do seu império, que só pode ser transferido para seu autêntico sucessor.

Nesse caso, não é certo aplicar esse tipo de conceito ao mundo indígena, ao menos não deveria ser, tendo em vista que a política e a economia indígena não estão fundamentadas na posse de dinheiro ou bens materiais. Todavia, conforme a economia política ancestral, o mundo tem uma natureza autônoma, a qual não podemos possuir. A natureza e os elementos da cosmologia, além de possuírem espíritos próprios, são coisas que não podem ser ‘dominadas’ pelos seres humanos, uma vez que o cosmos tem muito mais poder sobre a vida dos seres vivos do que o contrário. Portanto, a relação da pessoa indígena com o mundo, a vida e a natureza é uma relação muito mais de respeito do que dominação.

Acredito que equívocos como esse, de que o ser humano tem poder para submeter a vida e a natureza, são princípios de tantas catástrofes, tanto naturais quanto sociais, que encurtam a experiência da vida humana na terra. E este encurtamento sofre, sem dúvida, uma precipitação no advento da modernidade, que tem como característica o descontrole da produção de excedentes, incluindo armas químicas, desde bombas nucleares até compostos tóxicos aplicados ao agronegócio, pesticidas que matam rios e peixes, contaminam os lençóis freáticos, devastam a flora produtora de pólen e exterminam comunidades tradicionais inteiras para substituir por soja, eucalipto e cana para o biocombustível. Além das grandes áreas reservadas ao gado de corte, que servem para enriquecer latifundiários, em vez de alimentar a população pobre e marginalizada por esse sistema de segregação do alimento e moradia.

Totalmente oposto à premissa do patriarcado, o mundo indígena considera a decisão das mulheres no planejamento de governo. Uma vez que o lugar de morar é também da autoridade da mulher. E os espaços são compartilhados, sustentados pelo fundamento de que o meio ambiente não pertence a uma pessoa ou personalidade em especial, o meio ambiente é um lugar onde somos acolhidos e nos proporciona a vida. O espaço da casa é onde todo o significado da solidariedade e coletividade do mundo indígena está assentado e, de acordo com a sabedoria milenar e ancestral, é um lugar onde o privilégio de gestão está confiado às mulheres.

Outro dado importante em relação à comparatividade aos conceitos do feminismo ocidental é que as atividades de cuidado não são atividades depreciativas para homens e nem para mulheres. Todos são responsáveis pelo cuidado com as novas gerações. Uma aldeia, quando educa, busca na integralidade de seus atores sociais o compartilhamento da responsabilidade com os ‘educandos’. Em vista disso, todos sentem-se aptos e imbuídos de cuidar dos jovens e crianças, razão por que a mulher não está confinada à função da maternidade, por quanto seja, a atividade de cuidado, não é uma função inferior prescrita às mulheres, nem é exclusiva de uma personalidade masculina ou feminina. Ela está inscrita na ética de sociabilidade de todo o povo indígena. Cuidar é um ato nobre e faz parte da responsabilidade de todos para todos.

Divergências como estas fizeram com que mulheres indígenas e feminismo tivessem tido uma história paralela. No Brasil e no mundo, as mulheres feministas começaram um trabalho de combate à violência doméstica, sem a presença das mulheres indígenas. Fato lamentável, pois os aspectos da ancestralidade ameríndia podem contribuir muito para o enriquecimento do feminismo.

Todavia, as contribuições efetuadas pelo feminismo no conhecimento dos dispositivos de controle do ocidentalismo são incalculáveis, no sentido em que produz uma contracultura quanto à prática do encarceramento das mulheres, por meio de táticas religiosas de controle de seu corpo, privando-as dos espaços de decisão e deliberação das políticas que impactam a organização social, delimitando os espaços e tratando-as como objeto de dominação do sistema patriarcal que favorece a figura masculina, delineada pelos mesmos moldes da figura do colonizador. Responsável pela regulação da sua sexualidade, controle da natalidade, usurpação de sua autonomia na educação dos filhos. Determinação de todo o enunciado de deveres dirigido aos cuidados dos jovens e crianças, certificando que estes sejam socializados sob a ideia de poder voltado ao elemento masculino. Sendo inclusive utilizado cinicamente para maltratá-las.

De forma que as mulheres na modernidade ocidental não possuem autonomia sobre seus corpos. Nem a soberania sobre o seu espaço na casa, devendo sempre agir como serva do senhor que a governa.

Acredito que a área do conhecimento abarcada pelo Feminismo é uma importante esfera de genealogia do colonialismo, já que informa desde dentro as artimanhas de controle da dominação patriarcal, desconstruindo os dispositivos de regulação enquanto dados naturais e imutáveis. Ao mesmo tempo em que produz uma competência de difusão sobre os direitos das mulheres. Uma esfera em que as mulheres desempenham sua reconstrução histórica.

Uma importante área do feminismo, inclusive, se refere à criação de uma rede de proteção aos direitos das mulheres, pela sua liberdade e dignidade, chamada rede de enfrentamento à violência contra a mulher. Tratando-se de uma plataforma de informação contra todo o tipo de agressões e estrutura de acolhimento às vítimas de abuso. Medidas que podem salvar a vida das mulheres e melhorar a convivência social, trabalhando para dissipar os efeitos do machismo e sexismo.

É nesse ponto que chamamos atenção para uma confluência entre os ideais feministas e o fortalecimento de um arranjo de direitos das/para as mulheres indígenas, tirando-nos da invisibilidade, que nos deixa subjugada a todas as formas de violência, para expor as evidências dos dispositivos do poder colonialista operando dentro e fora das comunidades indígenas.

Considero essa confluência de perspectivas muito importante, pois o feminismo enumera e descreve essas formas de violência, dedica-se a etnografá-las, revelá-las e submetê-las à questão da justiça. E essa sua técnica leva-nos a conhecer métodos plausíveis quanto a identificar atos de violência disfarçados de benesses. Prezando por evitar a distorção do entendimento quanto à violência.

Várias pensadoras feministas contribuíram para desvelar as nuances do comportamento do abusador, como, por exemplo, as violências psicológicas microscópicas, a exemplo das interrupções na fala em público (Manterrupting), explicar coisas óbvias como se não fôssemos capazes de entender (Mansplaining), apropriação de ideias já expressa por alguma mulher (Bropriating), ou levar a entender que algo sobre o qual mulher estava certa foi um equívoco de interpretação, induzindo-a a pensar que enlouqueceu (Gaslighting) (GELEDÉS, 2015).

Por este motivo eu sustento que não especialmente o termo, mas a esfera do feminismo, como as redes de coletividade e vigilância pelo direito das mulheres, é pertinente, e que falta às mulheres indígenas se apropriar deste saber e se fazer presente dentro desta rede. Não, todavia, como objeto de determinação de conduta sobre o que é ser mulher, nem o que é ser feminista. Mas, sobretudo, dentro de um campo próprio que nos instrumente a conhecer as violências a que estamos submetidas, nos permitindo nomeá-las. Assim como dar nome aos agentes do assédio, para que sejam penalizados por seus atos. E que as mulheres deixem de ser perseguidas por denunciá-los.

 

Mulheres indígenas são feministas?


Costumo dizer que mulheres indígenas são irmãs, por que são filhas da MãeTerra. Somos sementes, no sentido da força que carregamos e que vai florescer. Não significa, porém, tomar isso pelo aspecto essencialista do termo; tão pouco acredito que nos cabe o título de eco-feministas. Pois, apesar da consciência da ancestralidade indígena estar ligada à terra, isso não significa que fazemos parte da fauna e de flora. Mas creio que nos entendemos como fruto, que está em processo dialético entre terra, vida e florescimento. Mulheres indígenas produzem as sementes, o futuro da geração de homens e mulheres, que vão continuar a luta. De forma que humilhar uma mulher indígena é humilhar toda a nação indígena e seus semelhantes.

Também não creio que seja correto relacionar a família indígena dentro de uma hierarquia de matriarcas, apesar de, no casamento, ser o homem que passa para a família da mulher (como é o caso da família Guarani). Mulheres indígenas são companheiras do homem, na luta por melhores condições de vida dentro do território indígena e pelo direito a ele. Estão em posição de equivalência com o signo masculino, na tomada de decisão pelo Bem-Estar da população.

Segundo o mito guarani, nhaderuvusu criou o mundo, enquanto nhandesy gerou o Sol e a Lua: os herdeiros do criador! Nota-se o fato de que o Sol e a Lua são complementares, pois, enquanto um doa o princípio da existência, o outro regula o ciclo da vida. Nota-se também que os herdeiros do criador não representam impérios materiais, senão que sustentam a longevidade do ciclo da existência. Além do mais, Kwaray e Jacy (o Sol e a Lua) são irmãos gêmeos, filhos de Nhandesy e Nhanderuvusu; entretanto, na história nada esclarece a ambiguidade acerca de se Jasy é masculino ou feminino. Diz-se: “Jasy é irmão de Kwaray”, não obstante, Jasy é uma palavra feminina e corresponde à Lua.

Há muitas mensagens ditas na história e ancestralidade indígena e a cada época devem ser lidas como metáfora para o tempo presente. De modo que a todo tempo devemos voltar à nossa ancestralidade e ler nas entrelinhas, as mensagens condizentes para o nosso tempo. Pois nela estão contidas coordenadas preciosas para ajustar as estratégias de luta e os códigos culturais cabíveis ao presente. Há muita coisa nos traçados do grafismo, histórias dos mais velhos, esperando ser interpretadas à luz do tempo vigente.

Sobre a perspectiva se cabe ou não o termo feminismo ao movimento de mulheres indígenas eu argumento que, do ponto de vista daqueles que não têm voz, os dois verbetes são utilizados para dar sentido a uma comunidade de reivindicações. Todavia, acredito que essa não seja uma discussão produtiva e nomear ou não as mulheres indígenas como feministas fica a cargo de como cada uma se entende quanto à vontade de escolher sua adesão, ou não, ao movimento feminista.

O fato é que o encontro com grupos de mulheres de todas as perspectivas é um momento importante para o fortalecimento da coletividade política das mulheres indígenas.

 

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Fabiane Medina Cruz
Indígena AVA-Guarani. Formada em Ciências Sociais, Mestre em Sociologia, Doutoranda em Ciência Política do IFCH Unicamp. Pesquisadora do Ciclo do Mate, Cia Matte Laranjeira, História e Política do Povo Guarani, Políticas Públicas, Feminismo, Feminismo Indígena. Professora Universitária na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Professora Formadora em Educação para as relações étnico-raciais – A temática Indígena na Escola.


Trecho do artigo Feminismo indígena ou Nhandutí Guasu Kunhã: A rede de mulheres indígenas pelos direitos ancestrais e reconhecimento ético, da pesquisadora e docente Fabiane Medina Cruz publicado no livro Literatura Indígena Brasileira Contemporânea: autoria, autonomia e ativismo. Organização de Julie Dorrico, Fernando Danner, Leno Francisco Danner, 2020.

Baixe o livro e leia o artigo completo aqui.

 

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