Mariana Brecht entrega um livro sobre o querer. E eu terminei querendo mais. Querendo ler mais a autora. Querendo saber mais da viagem. Querendo entender mais sobre o Congo. Querendo experimentar uma foto com os sapeurs .
Por meio de um thriller político autoficcional, Mariana Brecht apresenta-nos o Brazza, seu livro de estreia, onde narra a experiência da protagonista Manuela, de 27 anos, que embarca para um freela na área de produção audiovisual em uma empresa de cisternas na República do Congo e acaba tendo o passaporte confiscado e sendo obrigada a trabalhar na campanha política de reeleição do presidente ditador.
A obra publicada neste ano pela editora Moinhos reúne tudo que uma boa história precisa, além de ser absolutamente bem escrita.
Com várias camadas, o livro conta sobre as descobertas que envolvem os costumes de Brazzaville, a cultura, a culinária e arte do país que há três décadas é liderado por um governo autoritário. Neste entremeio, temos romance, tensão e uma escrita que coloca em destaque temas como branquitude, sororidade e, claro, amor.
Na confusão entre a realidade e a ficção, o leitor é conduzido para um excelente exercício de observação através dos olhos da protagonista - ou seria da autora - para um país totalmente novo. Não seria fácil se acostumar e como nos diz a autora logo no início da trama “quatro semanas demoram a passar quando a gente tem saudade”.
Logo no primeiro capítulo, acompanhamos Manuela desembarcando em Brazzaville e aí nos cabe a pergunta: onde fica? o que comem? o que uma jovem recém-formada foi fazer lá?
Com o passaporte confiscado, em um alojamento onde lhe disseram para não confiar em ninguém, o telefone grampeado, sem internet para que a oposição não se organize, muitas dúvidas e um só desejo: sair dali o quanto antes, a personagem consegue ‘fugir’ do sistema repressor ao escrever um diário, que resulta, enfim, no livro que temos a possibilidade de ler.
De um trabalho em audiovisual para a construção de cisternas no país africano a campanha de um ditador, é assim que Manuela nos conduz pela trama, em que deixa um grande amor no Brasil e se vê enredada num romance com um congolês misterioso. Entre encontrar lugares para narrar a história do presidente autoritário, as respostas corporais à presença do motorista que lhe tira o fôlego, o medo e o desejo de ir pra casa, Manuela desafia a si própria em tudo que era inimaginável até ali. E a graça do livro está justamente nisso.
No dia 16, a protagonista narra: “A jornada pelo Congo já não tinha sentido - um desejo marginal e incompreensível. Como todas as minhas jornadas, pensei”.
Nós, enquanto leitores, podemos acompanhar um super thriller político que desemboca numa história que mistura terror e amor na mesma proporção. E tudo isso é atravessado por um tema pouco falado - mas urgente de ser debatido: a branquitude. Os privilégios de raça e classe da personagem tensionam, ainda mais, o enredo de Brazza.
“O medo é uma construção que garante o lugar dos privilégios. Mas para acabar com o medo seria preciso acabar com tudo”, escreve na página 100.
Ao se envolver com o motorista congolês, Manuela se dá conta do privilégio racial e de como essa diferença fica evidenciada, destruindo as camadas invisíveis e/ou insensíveis até então. Temos uma trama que dá conta de temas espinhosos como este, obrigando-nos, como leitores, a acompanhar a forma como a personagem toma consciência do que está vivendo e como vai desconstruindo o privilégio, mas se mantém convicta do que deseja e acredita.
Ler o livro foi uma experiência que me colocou em xeque com meus próprios desejos. Talvez eu deseje, inclusive, ser mais parecida com a personagem principal. Me doar em viagens a países desconhecidos que sempre quis ir - mesmo sem nunca ter ouvido falar. Embarcar em jornadas amorosas com homens misteriosos sob a mira de um governo autoritário. Escrever pra sobreviver (tá, essa última parte já faço) e narrar a experiência de um quase sequestro em um diário, sem acesso ao próprio passaporte. Contrariar minhas convicções em nome da experiência.
Mariana Brecht entrega um livro sobre o querer. E eu terminei querendo mais. Querendo ler mais a autora. Querendo saber mais da viagem. Querendo entender mais sobre o Congo. Querendo experimentar uma foto com os sapeurs .
Brazza termina, mas essa vontade, não. Queremos mais livros da Mariana Brecht. Queremos mais histórias intensas assim.
•
Jéssica Balbino é mulher gorda, colunista da Puta Peita, jornalista, mestre em comunicação e acredita que pode transformar o mundo através das narrativas. É criadora e editora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita. Curadora de eventos literários em todo país. Autora dos livros "Hip-Hop - A Cultura Marginal", "Traficando Conhecimento" e “gasolina & fósforo - meu corpo em chamas” (no prelo). Psicanalista em formação.