É difícil para qualquer núcleo familiar querer suprir a necessidade que uma criança tem de viver no mundo. Eu diria que é impossível. Mas é esse o desafio que está sendo posto a nós, mães, nessa pandemia. E, como todo desafio materno, não tem pra onde fugir. É resolver da forma que dá e lidar com as consequências das nossas decisões.
Completamos um ano e um mês de pandemia quando escrevo isso. Um ano e um mês vivendo um momento histórico inédito no mundo todo. Momento especialmente inédito no Brasil, que nunca passou por grandes guerras, ou mortes na escala em que estamos vivendo, bem como nunca teve estas restrições gerais à vida cotidiana.
Aparentemente, por um descalabro do destino, esse momento histórico coincide com outro: a chegada ao poder de forças fascistas, autoritárias e sem qualquer interesse em salvaguardar os direitos da população, em especial das camadas econômica e socialmente mais vulneráveis.
Hoje, o Brasil é um dos piores países para se estar no mundo para todas as pessoas, sem dúvidas. Mas é ainda pior se você é mãe.
Eu, apesar de extremamente privilegiada, faço parte de alguns dos grupos mais impactados pela pandemia. Mulher, empreendedora do ramo gastronômico e cultural, e mãe de uma criança em idade escolar.
No início dessa jornada, eu tinha certeza de que seria difícil. Eu sabia que o endividamento da minha empresa e família seria inevitável. Eu sabia que a escolarização do meu filho seria precarizada e que minha atenção teria que estar novamente nele 24 horas por dia (saudades daquelas 4 horas de escola em que eu conseguia resolver 200 coisas sem ser interrompida).
Mas eu não conseguia mensurar os efeitos psicológicos que o distanciamento social sem esperanças de um futuro otimista traria.
Olhando para o passado, e o início do meu maternar, em 2014, vivíamos um ambiente político conturbado mas aparentemente seguro. Eu era muito crente no “não vai ter golpe”. Acreditava nas instituições e que elas protegeriam nossa democracia independentemente dos movimentos antidemocráticos que despontavam.
Quando veio o meu desejo de ser mãe, eu o abracei com todas as forças. Fui daquelas meio chocas, confesso, com lactação prolongada, mil horas lendo sobre desenvolvimento infantil, introdução alimentar, brincadeiras pedagógicas. Foram bons primeiros dois anos concentrada quase que integralmente no meu filho. E inevitavelmente de olho no que acontecia no país.
Eu, que sempre fui ligada a movimentos sociais, me censurava por estar fazendo militância de sofá enquanto lidava com um bebê, com mil hormônios, com uma casa e com uma vida profissional em ruínas que eu tentava resgatar.
Em 2016, eu chorei abraçada ao meu filho de um ano, e pedi desculpas a ele pelo golpe à presidente Dilma. Ali, eu entendi que o Brasil em que eu concebi minha criança não existia mais, assim como o futuro que eu idealizei para ela. Mas a vida não tem outra maneira se não seguir em frente. E eu, assim como o Brasil, segui, enquanto o ambiente político que se desenhava era cada vez pior.
Abri meu primeiro negócio. Foquei minhas energias no que eu podia fazer em cada um daqueles momentos pós-golpe. Em 2018, tive lapsos de esperança em um futuro melhor, como no movimento “Ele Não”.
Mas o povo brasileiro clamava por uma mudança torta, movida pelo ódio e não pela esperança. A população queria “mudar tudo isso que está aí”, num raciocínio que eu acredito (do alto da minha experiência de simples interessada por política) que combinava uma ausência de consciência política, um medo irracional da esquerda, semeado pela mídia desde sempre, e uma inconsciente confiança de que as instituições impediriam algum maluco de colocar em risco os direitos conquistados nesse país desde o fim do regime militar. Nos restou Bolsonaro, e seu séquito de incompetentes, para nos administrar no momento em que estamos.
Desde 2019, assistimos como que anestesiados a um desmonte de diversos direitos conquistados. Fim do Ministério do Trabalho e da Cultura, reforma trabalhista, reforma previdenciária. Tudo feito às pressas e com flagrante objetivo de precarizar os direitos da população. Chegamos a 2020 como uma sociedade já fragilizada. E, então, veio a pandemia. E estamos todos carecas de saber o que faz Bolsonaro para administrar essa crise.
Pobreza, fome, falta de esperança, tudo isso enquanto experimentamos o que é viver em isolamento social. E as principais vítimas, não importando de qual camada econômica da população venham, são as crianças.
É claro que as crianças em situação de pobreza estão sofrendo de males muito mais terríveis. Não consigo pensar em realidade mais avassaladora do que uma mãe solo periférica tendo que assistir seus filhos passarem fome em um país sem emprego e sem mercado informal. Ou, numa realidade um pouco menos pior, tendo que se colocar em risco em meio a uma pandemia para colocar comida na mesa enquanto deixa suas crianças tomando conta umas das outras. Esse é o Brasil pandêmico de Bolsonaro para as mães mais vulneráveis.
E para nós, privilegiadas, há o conforto de saber que não passaremos fome, que, se não tivermos mais como pagarmos nossos aluguéis, teremos rede de apoio para nos acolher. Mas não há alívio para lidar com a depressão de nossos filhos que de repente não sabem mais o que é ter amigos. Não sabem mais o que é estar em uma escola. Não sabem mais o que é viver em comunidade. Estão presos, em segurança, em seus apartamentos, cercados de telas e sendo privados de coisas tão básicas da vida como sempre a conhecemos.
Não conheço sequer uma mãe que não esteja em pânico com aulas on-line, trabalho presencial ou home office (quando há trabalho), e ainda tendo que suprir a necessidade que toda criança tem de viver em comunidade.
É difícil para qualquer núcleo familiar querer suprir a necessidade que uma criança tem de viver no mundo. Eu diria que é impossível. Mas é esse o desafio que está sendo posto a nós, mães, nessa pandemia. E, como todo desafio materno, não tem pra onde fugir. É resolver da forma que dá e lidar com as consequências das nossas decisões.
Falando apenas aqui do meu pequeno mundo privilegiado, em um ano eu tive que abandonar a casa onde eu vivia (alugada) para retornar à casa da minha mãe, tirei meu filho da escola particular, acumulei funções na minha empresa (além de dívidas) e passei a ter que cozinhar mais, limpar mais, brincar mais, consolar mais. E, o pior, passei a lidar com pesadelos de uma criança de 6 anos que começou a sonhar que eu pegava o Covid e “virava estrelinha”.
Eu não estava preparada para isso. Acredito que nenhuma mãe esteja. Me emociono só de lembrar dessa conversa, na qual eu prometi para o meu filho que eu não morreria assim e que nunca o deixaria sozinho, mesmo sem saber se isso é verdade mesmo.
Estamos todos exaustos. Mas, para nós, mães, não há a opção chorar em posição fetal no sofá. Nos resta trabalhar e trabalhar e trabalhar para tornar a realidade de nossas crianças um pouco menos pior, enquanto esperamos a vacina e, quem sabe, dias melhores.
Eu sinto que preciso acreditar num futuro melhor pelo meu filho. E, apesar de muitas vezes me pegar gritando com ele quando o estresse vai às alturas, eu me apego em torná-lo uma pessoa melhor. Ele é o meu projeto de futuro. Assim como vejo as mulheres à minha volta fazendo o mesmo pelos seus filhos, apesar das limitações que nos são impostas.
Dentro de uma sociedade que nesse momento (e há muito tempo) vem valorizando a competição, o dinheiro e a manutenção de sistemas opressores como o machismo, racismo e a lgbtfobia estruturais, a minha esperança recai sobre os meus próprios valores e em criar o meu menino para ser um amplificador das ideias de uma sociedade mais igual, mais cooperativa, focada em ser melhor como comunidade e não em precisar se apegar a valores como aqueles com que eu fui criada.
Ele não precisa ser melhor que seus pares. Ele não precisa explorar para ser um vencedor. Ele não tem que proteger os direitos dos ricos porque um dia pode ser ele o rico. Chega a ser engraçado escrever isso, mas foram esses os valores inculcados na nossa mente pelas gerações passadas. E é esse o raciocínio que me parece que permeia os que ainda bradam pelo neoliberalismo.
Estou aqui fazendo exercício de consciência política de pia. Eu sei. Os acadêmicos podem até vir me crucificar. Mas não é disso que as sociedades precisam? Que as pessoas entendam seus papéis e que cada um, a partir dos seus microcosmos, formem o macro que precisa de tantas melhoras?
Enfim, faço esse exercício de esperança para não enlouquecer em uma realidade cada vez mais desesperançosa. E convido a todos a fazer o mesmo.
Afinal, o governo Bolsonaro é passageiro. Nós e nossos filhos, não.
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Lívia Farah é mulher de luta, de colo e de choro, que aprende todo dia a enfrentar o mundo com mil demandas na cabeça e um filho à tiracolo.