Foram 54 dias amamentando com os mamilos feridos. E aí as fissuras fecharam completamente. E eu passei a amar amamentar.
Agosto é chamado pelas campanhas publicitárias da área da saúde de Agosto Dourado por ser o Mês de Incentivo ao Aleitamento Materno. Particularmente, eu sinto um misto de sensações com isso. Pois, ao mesmo tempo em que fico feliz que existam campanhas tão necessárias desse tipo, também fico triste que precisemos de campanha de incentivo para algo tão básico da espécie humana.
Somos mamíferos, logo, mamamos. A natureza criou o alimento perfeito vindo das mães mamíferas para seus bebês e, mesmo assim, o aleitamento materno exclusivo é uma luta nas sociedades modernas em todo o mundo. Por que?
Claro que parte importante da resposta está na indústria alimentícia que, há décadas, sequestrou das mulheres o título de produtora do alimento perfeito para bebês. Título este que vem sendo recuperado com muita luta pela sociedade científica e pelas próprias mulheres, que se vêem muitas vezes em embates malucos com seus próprios pediatras. Sobre isso, há centenas de artigos, denúncias e notícias. Em algumas buscas você vislumbra toda a treta.
Eu quero falar aqui sobre o lado mais doméstico dessa questão. Lado esse que também tem muito a ver com o capitalismo e as sociedades pós revolução industrial, mas que parece invisível, exatamente porque seus efeitos ocorrem da porta de casa para dentro.
Pense numa família tradicional moderna: mãe, pai (ou, muitas vezes nem ele) e bebê. Vivendo confortavelmente em seu apartamento, com toda aquela tralha que os algoritmos nos vendem desde o primeiro momento em que nos descobrem grávidas.
No entanto, mesmo com todas as comodidades que temos hoje, é difícil ouvir uma mãe de bebê que tenha relato de facilidade em amamentar. Não parece estranho? Com toda a tecnologia e conforto que temos, não deveria ser fácil oferecer um peito?
Como sobrevivemos como espécie durante milhares de anos sem a indústria alimentícia se é tão difícil aprender a amamentar um bebê?
A resposta é simples: antigamente havia uma aldeia. Nenhuma mulher com seu bebê recém-nascido passava horas e horas sozinha com ele e com todas as tarefas de uma casa, e com obrigações profissionais. Não. Sempre havia uma rede de apoio perene formada por mães, avós, tias e irmãs, a maior parte delas também com filhos pequenos. Se uma mulher por qualquer razão não conseguisse amamentar seu filho, havia outra com leite, conhecimento empírico e disponibilidade para ajudá-la.
Não existe bico de silicone, babá eletrônica, cadeirinha que balança sozinha e leite em lata que substitua isso.
Mas a nossa sociedade tenta fingir que sim.
O que você precisa para ter uma amamentação de sucesso é informação e saúde mental, ou seja, você precisa de uma rede de apoio. E não só uma rede de apoio que te livre das obrigações além do bebê, como cozinhar refeições saudáveis e serviços de limpeza (apesar desta ser de extrema importância), mas uma rede de apoio que te incentive a amamentar seu bebê e que acredite no seu poder de aleitamento, para que você possa acreditar nele.
A minha relação com a amamentação vem do meu berço. Minha mãe amamentou seus três bebês por mais de 2 anos. Se ela teve dificuldades no início, além de um pouco de dor, ela não se lembra. Mas uma coisa é certa: ela tinha uma rede de apoio e acreditava na sua capacidade de lactação. Ela sentiu aquela ânsia de alimentar e aninhar seu bebê (o que hoje a gente chama de exterogestação) e não encontrou obstáculos a isso. Um companheiro que sabia da importância da lactação e não ficou atrapalhando foi uma ajuda extra.
Por pura comodidade, não havia a menor possibilidade dela cair no papo da indústria de leite em lata. Ela não queria acordar de madrugada para fazer mamadeiras e muito menos lavá-las, então, o que poderia ser mais fácil do que se concentrar nas necessidades do bebê e oferecer o peito?
Além disso, tinha a questão do respeito familiar por essa necessidade imensa que os bebês humanos têm de estar no peito (por razões que vão além da alimentação), então, para ela, amamentar por tantos anos também era uma questão de refúgio. Ninguém exigia nada dela quando ela estava amamentando. Não havia nada mais importante que isso no mundo.
Eu cresci ouvindo que nunca ficava doente por ter sido amamentada por tanto tempo. Vi minha mãe amamentando minhas irmãs e até outros bebês, cujas mães estavam em dificuldade (prática essa que não é sanitária, fica a ressalva, mas que era socialmente aceita nos anos 80).
Também lembro dela usar o peito para resolver todas as coisas: caiu e machucou? Peito. Sono? Peito. Frustração? Peito. Era fácil e maravilhoso.
Eu cresci endeusando a amamentação. E ainda bem. Nem por isso meu início na lactação foi fácil.
Eu tive um não parto. Não vou contar tudo aqui, porque é um relato longo que passa por outros lugares, mas, se você tiver interesse em ler, meu relato de parto está aqui neste site.
Quando o Otto nasceu eu estava exausta. Eu sabia o quanto era importante manter a pega correta nos primeiros contatos do bebê com o meu seio, para evitar ferimentos. Porém, no segundo dia, eu caí no sono amamentando, ele pegou errado o meu mamilo e abriu uma imensa fissura. Comecei a compensar com o outro peito e ocorreu o mesmo.
Eu, com toda a minha rede de apoio, muito parecida com a da minha mãe, quase desisti de amamentar. Não desisti porque eu sabia que ia passar. E passou. Mas durante todo o processo eu fui bombardeada por informações descompassadas: enfermeira no hospital mandando eu usar bico de silicone e pomada, avó tentando me convencer a dar chupeta enquanto eu ouvia profissionais em quem eu confiava e a minha mãe mandando eu me livrar de toda a parafernália e ficar de peito de fora, cuidar da pega, não passar mais nada além do meu próprio leite nas fissuras e aguentar firme.
A coisa só começou a andar quando confiei no meu corpo e me livrei de toda a parafernália. Eu precisava de privacidade pra ficar fazendo topless, uma toalha pra morder no início de cada mamada, paciência e coragem.
Foram 54 dias amamentando com os mamilos feridos. E aí as fissuras fecharam completamente. E eu passei a amar amamentar. Não tenho a menor dúvida de que minha lactação teve um impacto enorme na saúde da minha criança e nos laços que temos. Também impactou imensamente no meu conhecer meu próprio corpo e no amor que tenho hoje por ele.
Essa lua de mel durou bastante tempo. Até o Otto completar 1 ano e 10 meses, para ser exata. Nessa época eu passei a ter ojeriza de amamentar. Meu bebê já não era tão bebê, eu estava ansiosa para retomar minha vida profissional plenamente e eu não queria mais performar a mãe mamífera tantas horas do meu dia quanto o meu bebezão ainda me demandava.
Eu acordava todos os dias parecendo que havia corrido uma maratona, apesar de dormir junto ao meu bebê e nem acordar para que ele mamasse. Comia MUITO. Mesmo assim, parecia uma vara de magra. Eu sentia que precisava resgatar quem eu era, além daquela mamífera, para me sentir plena novamente. Eu queria meu corpo sendo totalmente meu novamente. Eu estava em crise com a minha amamentação.
Mas eu tinha uma meta muito clara na minha mente: eu amamentaria meu filho até os dois anos de idade. Porque eu sentia que ele precisava disso, apesar de eu querer correr toda vez que o tetê durava mais de 5 minutos.
Foram dois meses conversando com ele que o tetê ia acabar. E eu falei a verdade para ele, da maneira que era possível. Falei que ele já estava grandão, que já comia bem, que não precisava mais mamar tanto e que eu precisava que o tetê acabasse para ficar mais feliz e brincar mais com ele. Repeti esse discurso muitas vezes. Ele tapava a minha boca e me ignorava.
Quando nos aproximamos dos dois anos dele, eu intensifiquei a conversa e passei a fazer uma contagem regressiva com ele. Ele já passava os finais de semana com a avó para eu trabalhar no restaurante e isso me fez decidir colocar a avó na jogada do desmame.
Expliquei tudo para ela e, na sexta, eu o coloquei para mamar e expliquei que nós estávamos nos despedindo do tetê e que depois daquele final de semana a gente não ia mais precisar dele. Tiramos uma foto para marcar o dia e ele foi para a avó. Foi bem difícil pra eu tomar essa decisão. Eu não aguentava mais amamentar e sabia que ele não precisava mais tanto do tetê.
Quando ele voltou, minha sogra me disse que ele tinha ficado ótimo (como sempre ficava) e que ela tinha conversado com ele e explicado que agora ele ia tomar leite de vaca. Ouvindo isso, ele perguntou: “mas eu não tenho uma vaca, vovó”. Claramente pensando em como ele iria dormir mamando na vaca.
Eu havia colocado esparadrapos nos mamilos quando ele voltou, porque dormíamos juntos e ele mamava de madrugada sem me acordar antes do desmame. No primeiro dia ele pediu o mamá e eu expliquei tudo de novo para ele com um aperto no coração. Ele choramingou por uns 3 minutos e dormiu.
No segundo dia o choramingo durou menos. No terceiro dia ele nem pediu.E foi aí que meu coração partiu.
Parecia que eu havia terminado um namoro com alguém abusivo a quem eu amava muito. Eu não estava mais feliz amamentando. Mas eu não esperava ter de passar por uma espécie de luto pelo desmame.
Passei uns 10 dias pensando em retornar a amamentação caso ele me pedisse. Mas recebendo apoio da minha família para permanecer na decisão. Ele não pediu. Mas continuou amando os tetês como se eles fossem amigos dele. Houve uma época em que eles tinham nomes e ganhavam bom dia antes de mim.
O outro lado foi que senti a perda de uma grande arma: o super poder do tetê de curar qualquer dor física e emocional. Essa parte foi bem louca pra mim. Ele caía e eu não sabia o que fazer. Só abraçá-lo não me parecia o suficiente. Mas foi.
É estranho como o período de desmame foi um processo bem mais difícil para mim do que para ele. Parei de ter dores nos seios apenas depois de 40 dias (não quis tomar remédio para secar o leite). E só deixei de ter leite um ano depois.
Essa é a minha história de amamentação. E ela é parecida com muitas e diferente de tantas outras. Como tudo na maternidade, cada mãe e bebê fazem a sua história. Não estou aqui para servir de espelho para ninguém, mesmo porque, se eu tivesse mais um filho, minha história de amamentação com ele seria provavelmente diferente da minha primeira.
Na pandemia, quando minha vida profissional e financeira virou uma bagunça, até senti vontade de ter outro filho só para ter o refúgio na maternidade de um recém-nascido. Mas, logo percebi que isso não resolveria nenhum dos meus problemas, era apenas uma vontade de fuga.
Hoje, continuo apaixonada por esse assunto e já apoiei algumas amigas para passar por fases complicadas na lactação. Tenho os bebês e mães que ajudei num lugar especial pra mim. Sei que fiz diferença nessas vidas.
Sobre as mães que não conseguem por qualquer razão ter essa experiência com a lactação, é importante dizer que é maravilhoso que conseguimos desenvolver um alimento artificial que supra com alguma eficiência as necessidades nutricionais de bebês. Assim como o vínculo formado entre mãe e bebê pode ser desenvolvido de diversas formas que não incluam amamentar. De maneira alguma acredito que mães que não amamentaram seus bebês sejam “menos mães”. Mas, nenhum desses aspectos minimiza a importância de falarmos sobre esse assunto para evitar que mães que querem e podem amamentar seus bebês o façam da maneira mais tranquila possível.
Tenho grandes amigas que não puderam amamentar plenamente. Algumas por cirurgias anteriores, outras por desinformação e falta de apoio, outras por mastites com mau acompanhamento. Seja por qualquer razão, a rede de apoio também nesses casos é fundamental.
Uma das coisas mais loucas da maternidade é como vamos esquecendo das dificuldades de cada fase (até para a humanidade ter um futuro, né, gente?). Até por isso, é super importante que exista uma rede de apoio, uma aldeia com conhecimentos ancestrais e, agora, também científicos.
E é incrível como as redes sociais possibilitaram a existência dessa aldeia de uma nova maneira. Grande parte do apoio que recebi, e pelo qual sou imensamente grata, veio do meu grupo de mães, que nasceu de um grupo de gestantes no Facebook. Além disso, há grupos enormes, moderados por consultoras de lactação cujas informações são todas baseadas em evidências científicas e onde você pode encontrar estudos e apoio de outras mães que passaram por situações parecidas.
Há também as consultoras de aleitamento (enfermeiras, nutricionistas, fonoaudiólogas, etc) que podem ser contratadas, ou encontradas nos bancos de leite, e fazem um trabalho maravilhoso, podendo te olhar de perto e resolver suas dificuldades de um jeito humano e único.
Leia, conheça seu corpo, esteja preparada para se surpreender com os percalços e também com as maravilhas dessa jornada. Mas também esteja preparada para pedir ajuda. Ela é necessária para você poder ser a mãe incrível que você é, mas que às vezes fica meio estranhona, porque você está sozinha com o seu bebê quando não deveria.
Não estamos mais na aldeia. Mas a aldeia pode sim ser encontrada e construída.
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Lívia Farah é mulher de luta, de colo e de choro, que aprende todo dia a enfrentar o mundo com mil demandas na cabeça e um filho à tiracolo.
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