Ou sua “sororidady” é só com as “manas” do facebook?
Vamos supor que você conheça o feminismo há um ou dois anos. Você leu algumas coisas, começou a se identificar, começou a reconhecer suas opressões. Você ficou com raiva. Você ficou com vergonha. Você continuou lendo e descobriu que essas coisas que te afetam também afetam outras mulheres diferentes de você. Você descobriu que algumas mulheres experimentam essa opressão de forma diferente de você. Você foi ler sobre como a mulher negra vivencia uma simbiose de machismo e racismo. Você ficou brava quando descobriu a fetichização pela qual as lésbicas e as bissexuais passam. Você começou a adquirir consciência de classe ao constatar que a mulher pobre é oprimida não só pelo machismo, mas por sua condição de classe.
Nesse processo, você talvez tenha conhecido muita gente. Muitas mulheres, a maioria jovens, da sua idade. Deve ter curtido muitas páginas no facebook, e compartilhado muitas imagens provocativas e textões. Deve ter começado a bufar e a revirar os olhos ao ver algo machista na televisão, em casa. Talvez tenha até começado a rever como o machismo esteve presente nas suas próprias relações afetivo-sexuais, tanto homo quanto heterossexuais (porque, sim, o machismo também afeta relações lésbicas).
Enquanto você passava por tudo isso, onde estava sua mãe*?
Enquanto você lia sobre relacionamentos abusivos e sobre a necessidade de autonomia da mulher frente ao homem, para que ela se concretize e transcenda enquanto ser humano, você olhou pra relação dela com seu pai, seu padrasto ou com o namorado dela?
Enquanto você lia sobre a dupla/tripla jornada de trabalho da mulher — a quem são delegadas as responsabilidades de cuidar da casa, cuidar das crianças e trabalhar fora — quem lavava sua roupa?
Enquanto você se conscientizava sobre a necessidade de acabar com a rivalidade feminina e de enxergarmos umas às outras como seres humanos completos, sobre como o patriarcado nos impõe uma ideia de “mulher” como ser traidor e egoísta, sobre como as relações entre mulheres são tidas como frágeis e superficiais, você refletiu sobre sua relação com sua mãe?
Enquanto você lia sobre socialização, sobre a imposição de estereótipos sexuais logo na infância, sobre a diferença de criação entre meninos e meninas e refletia sobre sua própria criação, qual papel você atribuiu à sua mãe nesse processo? Qual grau de culpa você lhe impôs?
Você tem uma visão de como foi sua criação. Talvez você já tenha perguntado pra sua mãe como foi a gravidez dela (se foi planejada ou não), como foi a reação do seu pai biológico, como foi a reação da família, se ela queria ou não engravidar. Talvez você tenha perguntado como foi o início da maternidade e como ela lidou com você, criaturinha recém-nascida, toda frágil e dependente. Será que ela teve depressão pós-parto? Como foi a cobrança da família em relação à forma como você seria criada? E seu pai, onde entrou nessa história toda?
Você tem uma visão de como foi sua criação, e talvez tenha muitas críticas a ela. Não seria incomum se tivesse; uma vez que somos podadas, de fato, desde a infância. O quanto de culpa você coloca sobre sua mãe? Você considera outros fatores — como a escola, o restante da família, a religião, etc — ou coloca a culpa de todos os seus traumas de infância na sua mãe?
Você vê sua mãe só como mãe ou você a enxerga também como um indivíduo? Um indivíduo que tem vontades próprias, sonhos próprios, traumas próprios, dificuldades próprias, gostos próprios, história própria? Ou você a enxerga como uma extensão de você, anterior a você, cuja identidade e subjetividade se resumem a isso — a ser sua mãe?
Eu não estou aqui dizendo que mães são seres imaculados que não erram — ou, então, que não podemos culpá-las, porque tudo de errado que fizeram foi por conta da socialização, da pressão do patriarcado ou porque queriam nos proteger de alguma forma. Não.
Estou tentando aqui dizer que são seres humanos. Falíveis, errados, às vezes irresponsáveis, às vezes imaturos. E a gente não aceita essas características em uma mãe. E isso faz parte da misoginia, do patriarcado — colocar a culpa de tudo nas mulheres, e, sobretudo, nas mães.
Relacionamentos familiares podem, sim, ser abusivos, e a relação de mãe-filha é complicadíssima tanto em termos sociais quanto psicológicos, então não vou nem entrar nesse mérito (nem quero). Não quero aqui menosprezar o sofrimento de ninguém nem duvidar de erros cometidos. A intenção é:
fazer o exercício de devolver às nossas mães a humanidade que se perdeu delas no momento em que engravidaram de nós.
Nem que seja pra reconhecer seus erros: que sejam erros de humanas, e não de “mães” (porque isso dá uma carga extremamente negativa).
A revolução começa, primeiro, dentro de nós mesmas. Mas se ela não alcança a forma como enxergamos nossas mães — os primeiros modelos de mulheres a que fomos expostas — ficaremos presas dentro de um ciclo vicioso de oferecer empatia a apenas algumas mulheres.
entenda, para a maior parte do texto, por “mãe” como aquela mulher que te criou (não necessariamente a mãe biológica).
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Texto publicado originalmente por FURIOSA no portal MILITÂNCIA MATERNA.
Foto: Luciano Meirelles.
2 comentários
Bem, vou tentar não escrever textão. Mas se for, tenha paciência de ler até o final pq vai ser legal. Eu, pessoalmente, tenho um posicionamento que segue essa linha do feminismo, mas sem achar que os homens são idiotas ou inúteis. Acredito que cada um tem seu valor, suas habilidades e sim, seus deveres. Mas o ponto não é esse. Quero falar da minha mãe. Meu avô morreu e minha mãe tinha uns 8anos de idade. Minha avó então, com 4 filhos pequenos teve que se virar nos 30 pra cuidar deles e da casa e pagar as dividas que meu avô deixou. Meu avô, segundo minha avó, era um homem maravilhoso e tratava ela como uma princesa. Era carinhoso com ela e com os filhos. Deu muito conforto pra eles, mas se foi com apenas 45 anos. E minha avó tinha 29. O caso é que o dia a dia, nos anos 70, pra minha avó não foi fácil. Ela endureceu pra sobreviver. E conseguiu. Sua preocupação era o futuro dos seus filhos. Eu não sei que tipo de impacto isso teve na minha mãe. Eu já perguntei, mas nem ela sabe. Bom, sei que minha mãe engravidou de um ficante aos 17 e ninguém soube do paradeiro dele. Nem ela. Após esconder a gravidez enquanto pôde, quando todos da família descobriram era tarde demais pra abortar aquela criança (eu, no caso).
O fato é que minha mãe jovem e imatura, só queria ser feliz, custasse o que custasse. Fui criada pela minha avó, minhas tias e eventualmente pela minha mãe. Cresci com muita mágoa e me sentindo um estorvo e indo por uma caminho que, já que não faz sentido eu estar aqui (pensava eu), qualquer coisa que me faça sentir bem está bom. Fui exposta a diversos tipos de abuso. Tive meu primeiro namoro abusivo. Só Não teve agressão física. Mas aquele relacionamento destruiu o pouco de auto estima que eu tinha. Isso aos 16… Bem, o tempo passou e muita água rolou debaixo da ponte. Encontrei um homem maravilhoso e me casei com ele aos 23. Aos 26 anos, decidi que deveria perdoar a minha mãe. Escrevi uma carta pra ela e chorei copiosamente, porque no fundo, eu achava que era tudo culpa dela. Depois que entreguei a carta, passado alguns anos, nunca falamos naquele assunto. Mas eu tive a liberdade de perguntar como tudo aconteceu, o que ela sentiu, como foi depois… Eu posso não concordar com as atitudes, mas entendo a razão delas. Eu sei que nunca foi por mal, que não foi de propósito. Sei que pra ela não foi fácil também. Sei que pra minha avó também não. Eu também perguntei como foi, o que ela sentiu…
Sabe, olhar minhas ancestrais com empatia e humanidade me faz uma pessoa melhor. Sou casada e tenho dois filhos. Deixo sempre claro pra eles meus sonhos, minhas expectativas, minha humanidade. Eles não são filhos de uma santa, mas de uma mulher de verdade.
Vejo a minha mãe, minha avó, minha sogra de um jeito que só eu vejo. Vejo como mulheres de verdade, com anseios, sonhos, desejos… Isso aconteceu quando parei de olhar para meu umbigo. Faço isso com todas as mulheres que conheço e percebo que muitas ainda querem ser a santa mulher maravilha multitarefa.
Na boa? Não rola.
Entramos nessa vibe e isso está acabando com a gente! É fácil o discurso de segurar a mão, mas precisamos olhar no rosto e calçar os sapatos, ou pelo menos, saber por onde aqueles pés caminharam.
Meu profundo e sincero respeito a autora do post. Amei. Com sua permissão, falarei dele no meu blog também.
Bjos. Monique
Texto simplesmente maravilhoso. Parabéns!