Passei uma infância e adolescência inteira achando que o objetivo era ter uma carreira e uma enorme conta bancária. Coisa que, na minha ingenuidade, eu tinha certeza que viria de muito trabalho duro, estudo, afinco. Chegaram meus vinte e poucos anos e descobri que esse não era o objetivo.
Eu tenho pensado muito na vida ultimamente. Não na minha vida, mas na vida de todas as pessoas. Qual o objetivo dela?
Passei uma infância e adolescência inteira achando que o objetivo era ter uma carreira e uma enorme conta bancária. Coisa que, na minha ingenuidade, eu tinha certeza que viria de muito trabalho duro, estudo, afinco. Chegaram meus vinte e poucos anos e descobri que esse não era o objetivo. Mentira. Não descobri nessa época.
Apesar de eu achar que estava completamente errada sobre o como alcançar o objetivo, eu continuava focada nele como se ele fosse uma verdade absoluta. Sem uma carreira e uma conta cheia de dinheiro, eu era um fracasso. No auge dos meus 24 anos.
Agora eu consigo rir disso, pois tenho consciência de que ninguém é um fracasso de maneira global (muito menos nos seus vinte e poucos anos). Tenho ciência de que fracassamos em vários momentos e áreas da vida. E também tenho ciência de que isso vai acontecer, inúmeras vezes.
O sucesso talvez esteja em aceitar os ciclos.
Mesmo assim, com toda essa sapiência da mulher balzaquiana (rindo dessa pretensa sapiência, da qual terei vergonha daqui 20 anos), essa sensação de fracasso nunca me abandonou totalmente.
Hoje eu sou, teoricamente, um sucesso. Mesmo assim, passo todas as semanas por horas e horas me sentindo um fracasso, por duas razões:
- Não sei definir minha vida profissional como uma carreira;
- Nunca tive uma conta bancária recheada de dinheiro.
Eu só fui deixando a vida me levar. Muitas vezes guiada pela vida do meu companheiro. De tanto ser resgatada por ele das minhas crises depressivas, entrei numa dinâmica de não acreditar que tenho uma carreira em que ele não esteja na equação.
Tendo abandonado minha área de formação (o direito), me abracei na área dele (a gastronomia) e amei. Mas passo horas e horas dos meus dias repetindo para mim mesma que sem ele eu não teria nenhum restaurante, não seria contratada por ninguém para formular um cardápio, pensar um ambiente, fazer uma playlist, contratar funcionários, lidar com funcionários, com compras, com boletos.
E, se paro e penso em largar a gastronomia e fazer outra coisa que eu goste, eu entro em um looping de pensamentos negativos: não sendo jornalista, não seria paga para escrever. Não sendo designer, não seria paga para fazer as artes que faço todas as semanas. Sozinha eu sinto que não sou ninguém.
Minha última crise depressiva foi sobre isso. E dela eu me auto resgatei. Com ajuda, obviamente. Eu não podia contar com ele para isso porque a dependência dele era o meu gatilho.
Com muita terapia, eu entendi que tenho uma carreira. Que eu posso me desvencilhar dele profissionalmente se eu quiser. Que eu tenho talentos e que eles são importantes para as minhas empresas.
Mesmo assim, eu ainda me mantenho financeiramente alienada. Quando abandonei minha carreira jurídica fechei todas as minhas contas bancárias. Passei uns 5 anos sem elas até ser obrigada por ele a ter uma conta novamente. Conta da qual eu nunca cuidei e abandonei há dois anos. Eu não tenho um pix. Eu passo o dele. E não por imposição dele, mas por um pânico meu.
Sequer sei explicar esse pânico, não é racional. Sou cobrada semanalmente para tirar um novo RG (o meu que eu tinha desde os 13 anos foi roubado ano passado e, não, eu não tenho CNH) e ir buscar meu cartão no banco, ou mesmo olhar a conta pelo aplicativo. Mas não o faço.
Eu odeio e-mails e correspondências em geral. E desconfio que só uso o whatsapp porque não sei desativar as setinhas azuis e os meus interlocutores sabem, automaticamente, que eu li o que eles querem de mim.
É difícil estar dentro da minha cabeça. Eu tenho total noção de que tenho uma vida ótima. Até invejável. Mesmo assim, eu sei e só eu sei o quanto eu sou um fracasso.
Eu sou a pessoa que fica esperando que alguém pegue pela mão e me faça tirar um RG novo. Eu sou a pessoa pra quem as pessoas pedem emprego, mas que não seria empregada por ninguém. Eu sou um sucesso à sombra. Uma ghost writer de prestígio, sem conta bancária e sem documentos. Aquela criança prodígio que tinha um futuro brilhante.
Os momentos em que não me sinto assim: quando estou lavando a louça, pendurando a roupa e cozinhando. Quando estou atendendo mesas. Quando estou conversando com amigos ou desconhecidos. Porque eu sei esconder muito bem das outras pessoas o fracasso que eu sou. Elas me acham um sucesso.
Eu sei fingir que sou um sucesso. Sei ocupar minha mente com coisas necessárias que ninguém vai me pagar pra fazer. E isso é um alívio pra mim.
Momentos em que vou direto para o fundo do poço: quando zapeio no insta. “Olha fulano nas Bahamas. Eu nunca irei às Bahamas.” Bahamas. Nem pagar uma escola para nosso filho está rolando desde a pandemia. Imagina viajar para fora. Aliás, nem RG para tirar passaporte eu tenho.
Um dos meus alívios tem sido ouvir o noticiário. Pelo menos o Bolsonaro e equipe são mais incompetentes e irresponsáveis que eu.
Ser mãe aliviou um pouco esse sentimento, pelo menos nisso eu sou boa. Mas o Otto também ainda não tem um RG então talvez eu esteja pecando.
Eu comecei o texto falando que andava pensando na vida de todas as pessoas. Menti. É na minha mesmo. Eu tenho pensado se as outras pessoas têm cabeças tão confusas quanto a minha. Se elas também encontram alívio na louça. Se elas também se sentem insuficientes. Eu sei que sim, muitas vezes. Mas eu não sei como sair desse ciclo.
Acho que preciso voltar pra terapia.
E, no meio dessa confusão mental imensa, fui obrigada pelo marido a entrar na academia. Numa tentativa dele de me animar e se exercitar. Foi assim: "Paguei 3 meses, agora você tem que ir”. O meu lado avarento jamais permitiria jogar esse dinheiro no lixo. E ele sabe disso.
Fui. Na avaliação física a moça me perguntou: “qual o seu objetivo? Emagrecer? Condicionamento físico?” a que eu respondi: “parar de pensar em me matar e ficar com a bunda dura”. Ela não sabia se ria ou não. Ficou desconcertada.
E assim eu comecei a “treinar” e encontrei um outro momento de alívio. Uma hora por dia que é toda minha. Em que só tenho que puxar ferro e sair suada e inundada de endorfinas. E descobri que quanto mais peso eu levanto com a bunda menos me sinto fracassada.
Eu, que sempre enchi a boca pra dizer que era ridículo quem tratava a academia como compromisso, descobri que isso não tem nada de ridículo. Eu que olhava pelo ângulo errado: academia não é pra ficar gostosa ou magra. É pra inundar o nosso corpo de endorfinas como a natureza o projetou para ser inundado nos tempos longínquos em que catávamos frutinhas e fugíamos de predadores em ambientes inóspitos. E é delicioso. Inclusive, eu comecei esse texto porque estou em parafuso pois faz uma semana que não vou à academia porque estou isolada com Covid.
Uma confissão de fracasso vinda da abstinência de endorfina. Quem diria? Antes era só pela mera existência mesmo.
Eu escrevi e então apaguei: “Agora que vocês já sacaram a enorme farsa que eu sou”. Porque eu não sou uma farsa. Eu sei. Eu só me sinto assim. E talvez eu só precise fazer um RG (ou dois), buscar meu cartão no banco e continuar tocando as minhas empresas, tonificando a minha bunda e lavando a louça. E só de fazer isso talvez eu esteja sendo e me sentindo melhor sucedida. Talvez seja esse o objetivo da vida.
Voltando aos pensamentos sobre a vida. Eu cresci numa ilusão maluca que em algum momento alguém me coroaria como um sucesso e, a partir daquele momento mágico, eu teria uma estabilidade na qual eu poderia fazer planos, tomar decisões e, enfim, viver feliz.
O que eu entendi muito recentemente é que não haverá esse momento. E eu estou vivendo o objetivo da vida todos os dias. Nos bons e nos ruins. Nos extremamente ocupados e naqueles em que me sinto culpada por não estar ocupada. E eu preciso parar de ansiar por esse momento para então viver a vida idealizada que programei pra mim na adolescência. Eu preciso só viver bem, dentro da minha realidade, melhorando-a conforme é possível e lidando com as adversidades que aparecem.
Entender isso tem sido libertador. E reflete diretamente nos valores que passo ao meu filho. Enfim, eu consigo me sentir menos fracassada olhando para os meus fracassos como uma vulnerabilidade que me torna quem eu sou. E agora, com a endorfina em dia, eu gosto do que vejo.
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Lívia Farah é mulher de luta, de colo e de choro, que aprende todo dia a enfrentar o mundo com mil demandas na cabeça e um filho à tiracolo.
1 comentário
Lívia, não sei como a gente chega nesse lugar, mas me identifiquei com várias partes do seu texto. Em especial sobre achar que só tem algo (carreira, sucesso profissional) por estar com um parceiro apoiando. Aqui em casa ambos somos de tecnologia e fizemos faculdade na mesma época, ambos construimos carreiras que nos trazem satisfação e, hoje, recém nomeada como diretora na empresa onde trabalho, eu ainda tenho essa sensação de que sem ele, não teria acontecido. Eu não sei porque a gente vai nesse lugar, mas com a terapia eu tenho conseguido voltar de lá mais rápido, algumas vezes inclusive realmente acredito que sou incrível. Não é sempre, mas houve tempo em que não era nunca. Eu realmente acredito que vou chegar no ponto em que sucesso será me amar completamente e me valorizar como mulher foda sem ouvir a voz da Jéssica (minha impostora) dizendo que é mentira. Eu acredito por mim, eu acredito por todas nós. Receba um abraço quentinho e apertado! Só de ler seu texto verdadeiro, sei que você é muito sucesso! 💜