UMA SOCIEDADE VIOLADORA por Ananda Vilela

UMA SOCIEDADE VIOLADORA por Ananda Vilela

Uma vez li sobre a dor e a delícia de ser mulher. Nessas últimas semanas essa frase não me sai da cabeça. Não por ela ser super poética e nos tocar em lugares diferentes, mas porque no Brasil de hoje não há delícia em ser mulher, não há delícia alguma em carregar no corpo a marca de violências contínuas contra nós. Foram semanas de notícias arrasadoras. 

No dia 20 de junho de 2022 o Portal Catarinas e o The Intercept denunciaram a conduta injustificável da juíza Joana Ribeiro Zimmer por não permitir a interrupção da gestação de uma criança de 11 anos, estuprada, violentada por homens, pela sociedade, pela justiça. O aborto para casos de estupro é constitucional. No caso em questão não havia dúvidas sobre o estupro, uma vez que a criança tem apenas 11 anos e, por isso, incapaz de decidir sobre seu corpo. 

No dia 25 de junho de 2022 foi publicado por Klara Castanho um relato de estupro seguido de entrega direta para adoação. A atriz foi violentada, entregou o bebê para adoção e foi massacrada pela opinião pública, pelo jornalismo predatório, pelas notícias falsas em nome de likes, pela enfermeira que lhe atendeu no momento do parto, pelo médico que a atendeu em sua primeira consulta após conhecimento da gestação. Seu corpo foi violado e sua saúde mental foi violentada por tomar uma decisão que é respaldada pela justiça. 

No dia 11 de julho de 2022 vem a tona a prisão em flagrante do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra por estupro de uma mulher grávida no momento do parto. Uma notícia devastadora que expõe o que nós já sabíamos: não há maneira segura de ser mulher nessa sociedade.

Não há forma que sejamos protegidas. Não há forma que sejamos cuidadas. Não há forma que possamos viver sem o medo constante de sermos violadas, de sermos controladas, de sermos mortas. A morte em vida que experimentamos todos os dias ao ler essas notícias, os relatos anônimos internet a fora, as cartas abertas e fechadas que temos acesso. 

 

“Um violador em teu caminho”,  performance criada e engajada pelo  coletivo feminista chileno LASTESIS
“Um violador em teu caminho”, performance criada e engajada pelo coletivo feminista chileno LASTESIS. Foto: LOUISA GOULIAMAKI + GETTY IMAGES

 

A cada dia, a cada notícia, fica mais explícito que nossos corpos estão a mercê de um Estado que controla, não nos preserva, não nos assegura. Uma justiça que protege aqueles que nos assombram, aqueles que impedem o acesso ao básico a uma criança violentada pela vida, por homens, pelo Estado. Nossos corpos estão à mercê do escrutínio público. Mesmo em momentos de maior vulnerabilidade e fragilidade, homens se sentem no direito de nos violar. 

Não é apenas sobre ética, ser anti ético no exercício da medicina, ou no jornalismo, ou no exercício da justiça, afinal, que a sociedade brasileira não preza pela ética não é novidade para ninguém, é sobre a crença e a segurança de homens de que esse crime sairia impune. E a cada dia surgem novas notícias e a pergunta que não cala: quantas outras mulheres passaram por violação semelhante?

Em 2021 56.098 mulheres foram estupradas no Brasil, incluindo estupro de vulnerável, um aumento de 3,7% em relação a 2020.

 

 

Estupro e feminicídio no Brasil

 

gráfico com resultados de uma pesquisa sobre estupro no brasil em 2020

 

 

Esses dados já alarmantes não representam a totalidade de estupros ocorridos no Brasil, uma vez que muitos casos são subnotificados, situação já típica na justiça brasileira. Em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, 37.915 estupros contra crianças e adolescentes foram registrados. Os casos de estupro de vulneráveis são mais difíceis de serem denunciados, as crianças muitas vezes não entendem o que aconteceu e não se sentem seguras para contar a alguém. Um dado importante a ser analisado é também o perfil dessas crianças, de 2017 para 2020 houve uma diminuição de 7.200 casos para 5.200 casos com crianças brancas, enquanto houve um aumento 5.300 para 5.600 de crianças negras. 

No país, estima-se que haja cerca de sete estupros por hora, em sua maioria contra crianças de até 14 anos. E mais, 1 a cada 7 adolescentes brasileiros já sofreram algum tipo de violência sexual, sendo estupro ou assédio. Além disso, dados de violência sexual de vulneráveis e onde esses crimes ocorrem também são estarrecedores. Em 2020, 65% dos casos de estupro ocorreram em casa, desses, 85% são conhecidos das vítimas. É o Estado, são os médicos, os vizinhos, os tios, os pais, os avôs, os amigos. Não estamos protegidas em casa, na rua, na escola, em lugar algum.

Sempre bom recordar a canção de feministas chilenas que coloca em caixa alta todas os receios postos nesse texto 

 

e a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia. O violador é você. São os policiais. Os juizes. O estado. O presidente. O estado opressor é um macho violador

 

LasTesis Senior. Estádio Nacional, Santiago do Chile, novembro de 2019.
LasTesis Senior. Estádio Nacional, Santiago do Chile, novembro de 2019.

 

LasTesis no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, Santiago do Chile, 2019. Foto: Daniel Barahona
LasTesis no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, Santiago do Chile, 2019. Foto: Daniel Barahona

 

É colossal a dor em trazer esses dados e o medo em saber que esse não é o fim para essas violências. O temor de sermos as próximas e o receio das próximas notícias está sempre presente. Esse texto foi escrito atravessado pela indignação, pela raiva, pela fúria com uma sociedade que sob um patriarcado violento e opressor protege homens que nos ferem, acolhe e promove mulheres que nos impedem de acessar a justiça, que não resguardam a vida de nossas crianças. Sabemos que não é o fim desses relatos de violência e é difícil não pensar que um dia essas violências serão o nosso fim.

 

 

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foto preto e branca da ananda vilela, mulher negra, com olhos escuros e cabelos encaracolados, castanhos e médios. veste uma peita branca com a frase pesquise como uma garota em preto

Ananda Vilela, mulher negra da periferia de Suzano, na Grande São Paulo. Doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestre pela mesma instituição. Pesquiso raça e racismo nas Relações Internacionais e também as intersecções entre raça, gênero e classe nas relações sociais.

 

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