Se eu não fosse tão covarde, acho que o mundo seria um lugar melhor pra viver.
Não que o mundo dependa de uma pessoa só pra ser bom, mas se o medo não fosse constante, eu ajudaria as milhares de pessoas que agem pelo planeta como centelhas tentando criar uma labareda que incendiasse de entusiasmo a humanidade.
Mas o que vejo refletido no espelho é um homem abatido diante das atrocidades que afetam as pessoas menos favorecidas.
Tivesse coragem não aceitaria as crianças passarem fome, frio e abandono nas calçadas, essas que parecem fantasmas, nos assustam nos semáforos com armas na mão, nos pedem esmolas amontoadas em escolas que não ensinam, e por mais que elas chorem, somos imunes a essas lágrimas.
Você acha que se realmente tivesse coragem aceitaria uma pessoa subjugar a outra apenas pela cor da sua pele? Do seu cabelo? Um poema é quase nada disso tudo.
Sou um covarde diante da violência contra a mulher, da violência do homem contra o homem. Só no Brasil são 50 mil deles arrancados à bala do nosso pacífico país. O que dizer da violência contra os homossexuais que são apedrejados nas calçadas das avenida elegantes?
Tivesse mais fé na minha humanidade, de maneira alguma aceitaria que um Deus fosse melhor que o outro. Sou tão covarde que nem religião tenho, e minhas mãos que não rezam, já que estão abertas, poderiam ajudar a construir um templo onde caberiam todas elas, mas eu que não tenho fé nem em mim mesmo, sou incapaz de produzir esse milagre. De repartir o pão.
E porque os índios estão tão longe da minha aldeia e suas flechas não atingem meus olhos nem meu coração, não me importo que lhe tirem suas terras, sua alma, seus rios...
E, analfabeto de solidariedade, não sei ler sinais de fumaça, eles fazendo guerra e eu fumando o cachimbo da paz. Se tivesse um nome indígena seria "cachorro medroso".
Se fosse o tal ser humano forte que alardeio por aí, não concordaria em aceitar famílias inteiras sem onde morar, vagando em busca de terra, ou morando em barracos de madeiras indignas pendurados nos morros, ou na beira de córregos. Não nasci na favela, mas ,eu coração é de madeira, fraco.
A lei condena um homem comum que rouba outro homem comum e o enterra na masmorra moderna, mas nada faz contra aquele político corruto que rouba milhares de pessoas apenas com uma caneta, ou duas, e que de quatro em quatro anos a gente aperta-lhes a mão, quando na verdade devíamos cuspir-lhes na cara.
E eu como um juiz sem martelo não faço nada além de condená-lo ao meu não voto. É pouco, já que sei onde eles se entocam.
A lei é cega, mas acho que lhe fizeram transplante de órgãos numa dessas votações secretas.
Assisto a falência da educação e o massacre contra os professores, e sei que muitas vezes, o resultado de ensino de qualidade mínima é o presídio de segurança máxima.
Fico em silêncio quando a multidão desinformada pede redução da maioridade penal, porém, mal ela sabe que se não educarmos nossas crianças vão ter que prendê-las com 16 anos, depois 14, depois 12, depois, até que não tenhamos mais crianças nas ruas.
E elas, as ruas, serão tão seguras que a gente vai sentir falta das crianças. Época em que os brinquedos serão visitados nos museus.
Estão cortando as árvores e aceito a cara de pau dos donos das serras elétricas e sei que o machado está nas minhas mãos. Depois fico abraçando o lago poluído quando na verdade deveria estar mergulhado nele, assim como os peixes mortos.
Pagos os meus impostos e sei que eles não fazem nada com eles, ainda assim faço propaganda da minha consciência tranquila. Desconfio que é essa tal consciência tranquila que está acabando com o universo.
Calado assisto a falsa democracia deste país ilegal, sem alvará de funcionamento e sem licença pra ser pátria, e me emociono com o hino nacional cantado antes do jogo da seleção na Copa do Mundo.
Perdoe-me por apenas ser poeta, e ter apenas poemas como arma, ainda que ninguém me diga, sei que é muito pouco, quase nada.
O sangue que pulsa na veia tinha que estar nos olhos.
O mundo gosta das pessoas neutras, mas só respeita as que tem atitude.
Se não posso mudar o mundo, deveria mudar a mim mesmo.
Acho que é isso que vou fazer agora.
Antes que seja tarde.
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Sério Vaz é poeta de periferia e idealizador do Sarau da Cooperifa. Poema extraído do livro "Flores de Alvenaria"