Tem uma coisa que há muito tempo me incomoda sobre o discurso da “maternidade real”, movimento childfree e mesmo a militância contra maternidade compulsória que é a dificuldade que encontramos em nomear o verdadeiro vilão de toda a devastação que a maternidade representa: o sistema de dominação masculina sobre as mulheres, também conhecido como patriarcado.
Há uma frase inclusive muito famosa que é especialmente reveladora que diz “amo meu filho, mas odeio ser mãe”. O que isso significa na realidade? Porque inclusive essa frase é uma contradição em termos. Você ama seu filho por causa da relação que tem com ele que é a relação de maternagem. Você não ama o bebê da vizinha. Não é um amor universal por todos os bebês do mundo. É um amor exclusivo, característico que você sente por essa criança por ela ser quem é: seu filho. Então, na real,
não dá pra “amar seu filho” mas “odiar ser mãe”, porque uma coisa está intrínseca na outra, não existe sem a outra.
Mas eu estou dizendo a maternidade na nossa sociedade então é uma coisa boa e que as mulheres estão reclamando demais, porque o amor compensa tudo? Nem pensar uma blasfêmia dessa. O que eu estou dizendo é que se você ama seu filho, você ama ser mãe sim.
Não é a maternidade que você odeia. Você odeia tudo que a sociedade te tornou e maneira como ela te trata em função de te obrigar a ter filhos e criá-los absolutamente sozinha e da maneira que se espera. E aí, vamos dar nome aos bois: você odeia o patriarcado.
Mais especificamente aos homens. Porque são eles que fizeram isso. Vamos responsabilizar a quem é de direito.
São os homens que, no controle das leis, nunca se preocuparam em criar legislações específicas de proteção e amparo para mulheres gestantes e mães. São os homens que, no controle das empresas, disseminam a cultura de discriminação de mulheres que tem filhos. São os homens que objetificam os seios femininos a ponto de você ter constrangimento em amamentar em público e são eles que projetam os espaços públicos e nunca se preocupam em criar espaço para mães e suas crianças. São homens que no controle das políticas públicas não constroem uma rede eficiente de creches e escola que atenda a necessidade de trabalho e descanso das mulheres.
São homens que estão no comando dos centros de pesquisa desenvolvendo métodos contraceptivos cuja responsabilidade do uso cai no colo das mulheres e nunca métodos que eles mesmos podem usar. São eles que se recusam a usar camisinha. São eles que fazem e votam as leis que não permitem a interrupção de uma gravidez indesejada.
São homens que abandonam em massa seus filhos ou exercem uma paternidade de ocasião, não dividem tarefas domésticas, exploram suas mulheres e as deixam completamente sobrecarregadas. São homens que praticam violência sistemática contra mulheres e crianças as deixando sob um regime de completo terror e desamparo.
São homens que fazem — ou não fazem — as leis que deveriam proteger mulheres e crianças. São eles que as aplicam — ou não aplicam. O desamparo da mulher-mãe tem nome e endereço.
Se cada homem cumprisse essa obrigação mínima, no aconchego do seu lar, de fazer apenas e tão somente a sua parte, o fardo da criação já diminuiria imensamente sobre as mulheres.
Se cada homem constrangesse outro homem que pratica abandono parental, que agride, que maltrata, violenta, abusa, sequestra, mata sua mulher e seus filhos, se fizessem esse mínimo, mulheres sentiriam-se mais seguras, livres, menos reféns do medo.
Escutem as mães. Escutem o que elas dizem. Quando uma mãe fala sobre sua maternidade e diz que “um sorriso paga tudo”, ou que “não existe felicidade maior”, ela não está só tentando minimizar uma situação que é de sofrimento (embora também), ela está dizendo: “olha, mas há coisas boas nessa experiência a ponto de valer a pena”. Porque mesmo homens, quando efetivamente resolvem assumir para si realmente a criação dos seus filhos, relatam encontrar esse lugar de satisfação emocional.
Não podemos ignorar a dimensão subjetiva da experiência que é a parentalidade, porque no fim, a subjetividade é essa força motriz que nos impulsa enquanto humanidade. Com maternidade compulsória ou sem maternidade compulsória, com socialização ou sem socialização, o fato é que mulheres pariram, parem e parirão ainda por um bom tempo. E essa experiência também é um lugar que oferece recompensas emocionais para muitas e muitas delas.
O que a maternidade precisa é ser retirada desse lugar instrumentalizado. A mulher precisa ser retirada desse lugar de reprodutora de mão-de-obra pro capitalismo, de capataz do patriarcado.
Para que uma maternagem menos sacrificante não seja quase um privilégio de classe, onde todas as demandas faltantes no processo de criar um filho são resolvidas por se ter dinheiro.
O discurso da “maternidade real” e todo o discurso que está sendo criado sobre maternidade não está sendo efetivo para construir pontes entre a sociedade no geral e mulheres-mães e principalmente para a proteção das crianças. Que acabam sendo eleitas as grandes culpadas, afinal, elas insistem em nascer e existir. São vistas como pequenas maldições que as mulheres precisam “aguentar”. O discurso de ódio contra crianças na nossa sociedade já é consistente demais para que as próprias mulheres venham engrossar o coro.
Precisamos nomear o problema da maternidade: o problema são os homens.
Não são as mulheres, não são as mães, não são as crianças. A maneira como tratamos esse tema só nos leva a um lugar onde mulheres-mães vão sendo cada vez mais isoladas, onde são vitimizadas, ostracizadas, postuladas como “coitadas”. Onde crianças vão sendo vilanizadas, como se elas fossem pequenos gremlins que só suas mães aturam. Como se o problema da maternidade fosse ter que criar essas crianças que são… veja só! crianças! com suas demandas específicas de um ser em desenvolvimento. Como se não houvesse beleza e encantamento nesse processo para quem está envolvido. Como se algumas vezes, no final do dia, realmente um sorriso não pagasse tudo.
Criar crianças, preparar seres humanos para conviver em sociedade (que é afinal do se trata a parentalidade, não?), é uma tarefa de muita beleza e muita dor. Mas essa dor só é tão intensa porque a sociedade para a qual as criamos, e na qual estamos inseridas, é esse caldeirão de injustiça, exploração e caos que vemos todos os dias. Então vamos nos organizar para atacar o problema na sua raiz, que certamente não são as mulheres, ou as crianças, mas sim, como sempre, esse sistema capitalista-heteropatriarcal.
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Texto de Cila Santos publicado originalmente no blog Militância Materna.
Arte de Ana Matsusaki para a matéria Maternidade Lésbica do blog Azmina.